SABER FILOSÓFICO
Amigos leitores, o tema do texto de hoje é: Nietzsche, Foucault e a história dos modos de subjetivação — por uma existência poética e estética. Gostaria que pesquisassem as referências que estão ao longo desta pesquisa.
O desafio ao esforço de pensar com Nietzsche e Foucault é, pois, lançar novos olhares sobre a formação histórica da subjetividade para aí então entender as formas atuais. A relação entre esses dois autores se faz importante, uma vez que colabora para a reflexão de uma subjetividade pensada em termos históricos, processuais, e não mais em termos metafísicos.
Em outras palavras, trata-se de narrar uma história dos modos como se desenvolve, entre Nietzsche e Foucault, uma ponte a partir do limiar da desconstrução de um imaginário metafísico do sujeito, para uma compreensão de que a subjetividade é historicamente construída e fabricada. Essa perspectiva projeta-se até uma representação ôntica do sujeito, isto é, “em sua existência concreta [logo, histórica], distinguindo-se do ontológico, que diz respeito ao ser em geral” (JAPIASSU, 1996).
Sendo assim, não se trata de mero conhecimento de si, mas da compreensão de como o ser humano pode criar uma subjetivação própria por meio da consciência histórica. Sendo assim, parece ser necessário entender como pode acontecer “[…] uma história dos modos de subjetivação escrita sob a perspectiva do modo presente dessa história” (SUGIZAKI, 2006), pois, como destaca Antoine Prost (2012), “só existe história das coisas pensadas, no presente, pelo historiador” e, ao mesmo tempo, vivenciadas por ele e pelos outros (PROST, 2012).
Para esse empreendimento, assume-se aqui o caminho já estabelecido pela leitura que Béatrice Han (2008) fez do pensamento de Foucault, em sua totalidade. Tal interpretação nos propicia pensar uma história dos modos de subjetivação a partir do presente; ao mesmo tempo, provoca pensá-la não só a partir dos preceitos da ciência, mas também das relações de poder e saber historicamente constituídas por seres humanos reais para e com outros seres humanos também reais no interior de determinados jogos de verdade.
Trata-se, isso sim, de saber como a história pode analisar os jogos de verdade, inclusive os jogos da metafísica, para fazer o levantamento das sucessivas construções históricas do ser. Mas o ser não se constitui historicamente por si mesmo. Não é a história do próprio ser que se pretende fazer, mas a história de como ele é experimentado (SUGIZAKI, 2006).
Desse modo, tentamos resgatar com Nietzsche e Foucault a possibilidade de repensar a subjetividade a partir de relações históricas efetivas. A história da constituição da subjetividade apresenta-se, portanto, no campo de uma “história efetiva” (FOUCAULT, 1979), a qual percebe cada um em suas particularidades. Possibilita, ainda, como tentaremos mostrar, uma reflexão criativa, inventiva e transgressora, por isso ética, acerca a vida.
O texto é dividido em quatro partes: a primeira trata da conceituação do que é uma história dos modos de subjetivação; a segunda parte resgata a filosofia de Nietzsche para essa história; a terceira trata de explicitar, brevemente, como agem as instituições no processo de objetivação do sujeito; na quarta e última parte, mostraremos como os modos de subjetivação podem promover uma ascese ao ser humano, uma vez que potencializa a condição de refletir sobre a sua existência, isto é, de ser artista e poeta de sua própria vida.
Direto ao ponto
Foucault e os modos de subjetivação:
Mas o que são os modos de subjetivação e como fazer história deles? Foucault mesmo explica o seu empreendimento nos primeiros parágrafos de “Sujeito e poder”.
Eu gostaria de dizer, primeiramente, qual foi o objetivo do meu trabalho nos últimos 20 anos. Não foi analisar os fenômenos de poder nem lançar as bases de tal análise. Procurei, antes, produzir uma história dos diferentes modos de subjetivação do ser humano em nossa cultura; tratei, nessa ótica, dos três modos de objetivação que transformam os seres humanos em sujeitos (FOUCAULT, 2014).
Isso significa que há histórias dos modos de subjetivação em Foucault, e elas só se justificam como tal porque não tratam de modos universais ou universalizantes de subjetivação, mas sim de possibilidades específicas de cada sociedade e de seus modos de objetivar o sujeito. Aliás, segundo as trilhas de Deleuze, não há em Foucault sequer a ideia de sujeito, isto é, “se existe um sujeito, ele é sem identidade” (DELEUZE, 1992).
Foucault escreve histórias de relações de saber-poder tal como se dão na sociedade e por meio de suas instituições para aí flagrar os modos como o sujeito foi constituído. Ele narra histórias das técnicas de como o sujeito foi e é sujeitado. Por isso Foucault explica como investigou e em quais formações históricas tentou identificar os sujeitos objetivados e sujeitados.
Há, inicialmente, os diferentes modos da investigação que procuram aceder ao estatuto de ciência; penso, por exemplo, na objetivação do sujeito, falando de gramática geral, de filologia e de linguística. Ou então, sempre nesse primeiro modo, na objetivação do sujeito produtivo, do sujeito que trabalha, em economia e na análise das riquezas. Ou, ainda, para tomar um terceiro exemplo, na objetivação somente do fato de estar em vida, na história natural ou na biologia.
Na segunda parte do meu trabalho, eu estudei a objetivação do sujeito no que chamarei de práticas divisoras. O sujeito é ou dividido no interior dele mesmo ou dividido nos outros. Esse processo faz dele um objeto. A separação entre o louco e o homem é de espírito: o doente e o indivíduo em boa saúde, o criminoso e o rapaz gentil ilustram essa tendência.
Enfim, procurei estudar — esse é meu trabalho em curso — a maneira como um ser humano se transforma num sujeito; orientei minhas pesquisas para a sexualidade, por exemplo, a maneira como o homem aprendeu a se reconhecer como sujeito de uma sexualidade (FOUCAULT, 2014).
Das relações entre saber e poder surgem condições pontuais de objetivação e sujeição segundo as quais o sujeito se submete a verdades impostas e ao dever-ser, que implicam em mecanismos de formação e constituição das mentalidades e dos corpos. Isso quer dizer que não há em Foucault, em momento histórico nenhum, um sujeito dado, universal; cada época produz seus sujeitos (DELEUZE, 1992).
No que diz respeito a essas condições, Foucault não trata, por exemplo, da docilização dos corpos de maneira intuitiva. Ao contrário, ele entende esse processo como o resultado e a difusão dos discursos e das práticas disciplinares impostas às pessoas que as levam a adquirir relações muito específicas e se submeter a elas. Há, portanto, uma ordem, um chamado, (por que não dizer?) um mandamento, uma política (FOUCAULT, 1987) discursiva precursora da docilização. Essas estratégias têm como mediador o procedimento disciplinar provocado pelas relações de poder e de saber que levam à objetivação do humano.
Em “A hermenêutica do sujeito”, Foucault aponta que a ideia de subjetividade está ligada, genealogicamente, ao cuidado de si. Mostra suas interpretações da Antiguidade Grega até suas práticas na Era Cristã, quando o cuidado de si tratava de conversão total do indivíduo para ter acesso à verdade. Mais ainda, destaca que a maior causa do desprezo do cuidado de si é, justamente, o momento cartesiano que o transformara em um egoísmo (FOUCAULT, 2005).
Também há análises semelhantes em “História da loucura”, texto no qual Foucault mostra como se constituiu racionalmente a representação do louco, especialmente a partir da Idade Clássica. O louco não era uma categoria médica ou psicológica, até porque não existia a psicologia no classicismo. O louco e a loucura eram condições morais, pois o que estava em jogo era a ordem social e moral. Com base nesses pontos, pode-se dizer que há muito tempo vêm se formando seres manipuláveis e dóceis? Certamente, mas “Vigiar e punir” considera que, na Idade Clássica, a docilização intensificou-se como nunca na história.
Mas Foucault não fala somente em sujeitos objetivados, ele fala de pontos de resistência. Por isso, novamente em “Sujeito e poder”, há uma explicação importante e necessária para a leitura de Foucault e a problemática da história da subjetivação: “Era, então, necessário ampliar as dimensões de uma definição de poder, se quiséssemos utilizar essa definição para estudar a objetivação do sujeito” (FOUCAULT, 2014).
Foucault coloca em destaque a necessidade de se propor uma análise em torno da subjetividade pari passu à forma segundo a qual objetivação e subjetivação se encontram em determinadas condições históricas, caracterizando o modo como o sujeito é objetivado em certos jogos de verdade, de poder e de saber. Mais ainda, e talvez mais importante, é tentar identificar formas de resistir aos poderes e saberes e construir subjetividades, por assim dizer, além do bem e do mal, para usar uma expressão que é bem a cara de Nietzsche.
Os modos de subjetivação podem ser também os meios pelos quais se explicitam as maneiras de resistência, que mostram como o ser torna-se capaz de criar possibilidades de existência que, de algum modo, estão além do poder e do saber (DELEUZE, 1992; 2005; REVEL, 2005). Tal condição, ou tais condições, só são possíveis, ao que parece, porque o reconhecimento histórico provoca ao ser humano a capacidade de se rever e de se reconstituir.
Diante da metafísica reconstituída na modernidade, Foucault procurará estabelecer não só o que ou o porquê, mas o modo dos processos de subjetivação. Mas não só isso: ele nos convida, e até mesmo convoca, a descobrir e desconstruir as representações de quem fomos para compreendermos o que somos, para tentarmos construir o que podemos ser. Nesse aspecto, Foucault tenta superar a perspectiva etimológica do termo sujeito que assinala dois sentidos para o termo; ambos remetem à subjugação do sujeito (FOUCAULT, 2014).
Sem dúvida, o objetivo principal, hoje, não é descobrir, mas recusar o que nós somos. Devemos imaginar e construir o que poderíamos ser para nos livrarmos dessa espécie de dupla obrigação política que são a individualização e a totalização simultâneas das estruturas do poder moderno. […] Precisamos promover novas formas de subjetividade, recusando o tipo de individualidade que se nos impôs durante vários séculos (FOUCAULT, 2014).
O Nietzsche de Foucault:
Entre as leituras de Foucault, certamente destacam-se Nietzsche e Heidegger. Mas, como aponta Deleuze (2005), Foucault é mais nietzscheano. Nesse sentido, com Deleuze seria possível dizer que Foucault utiliza o martelo nietzschiano para rachar as velhas noções de sujeito e falar de sujeitos produzidos, ou melhor, de subjetivações. Sendo assim, vejamos um pouco do pensamento de Nietzsche sobre o sujeito.
A crítica de Nietzsche ao sujeito é muito estudada e, embora não esgotada, aparece já exaustiva no cenário filosófico. Contudo é necessário refazer esse cenário e tentar compreender como Nietzsche combate, tão severamente, o sujeito moderno. Diga-se de passagem, para fazer isso, Nietzsche fez-se historiador quando, por exemplo, questionou a filosofia clássica a fim de ouvir novas vozes, novos sujeitos, novas experiências. Tanto é que, já em “O Nascimento da tragédia”, ele destaca Sócrates como o modelo do racional, no qual sucumbe a humanidade (cf. NIETZSCHE, NT, § 18).
Em outros textos, Nietzsche também aponta para ideia de que o sujeito é construído historicamente, muitas vezes falando de si mesmo, como se pode perceber em “Humano, demasiado humano”, na medida em que vai deixando de lado as influências de Richard Wagner e de Arthur Schopenhauer e envereda-se por caminhos ligados ao Iluminismo e à ciência. Há, nesse momento, como em toda a sua obra, a necessidade de se libertar, de se transformar, de vir a ser o sujeito Nietzsche, que se transforma conforme os processos históricos, mas que não os toma como doutrina, ortodoxia ou moral.
Mas Nietzsche não permaneceria muito tempo como um apologista da ciência (cf. NIETZSCHE, HH, A vida religiosa, § 133), pois percebeu que ela seria uma nova religião, um novo mecanismo para se buscar uma verdade inequívoca e irrefutável, o que ele tentaria refutar tanto em “Além do bem e do mal” (NIETZSCHE, BM, Dos preconceitos dos filósofos, § 14) quanto em “Genealogia da moral” (NIETZSCHE, GM, Terceira dissertação, § 245). Nos parágrafos mencionados, o filósofo alemão aponta para a necessidade de reconhecer o que é a vontade de verdade e quais impulsos conduziram a humanidade a ser signatária de tal vontade, produzindo, assim, sujeitos para tais vontades de verdade.
Na mesma “Genealogia da moral”, é possível reconhecer a provocação de Nietzsche sobre o sujeito. No prólogo (§ 1), Nietzsche diz que não nos conhecemos. Estaria ele falando somente do conhecimento? Não. Refere-se muito mais aos sujeitos sujeitados por condições históricas específicas, por representações de mundo forjadas para atender a determinadas premissas sociais e culturais. Nunca nos conhecemos, dirá Nietzsche (GM, prólogo, § 1), “porque nunca nos procuramos”. Será que os humanos não querem se conhecer? Nietzsche nos faz entender que não fomos forjados para isso. A história que foi feita até agora foi a do ressentimento, a da má consciência, a da ilusão de outro mundo, a história da negação deste mundo, onde somos e seremos conformados e eternamente escravizados.
São as condições históricas que levam os homens a criarem suas instituições, suas ilusões, seus ideais, seus além-mundos. As instituições representam os indivíduos e são representadas por eles, são culturais, ainda que essa cultura seja decadente. Ora, se quer-se formar e cultivar escravos, diz Nietzsche (CI, IX Incursões de um extemporâneo, § 40), seria “tolice educá-los para [serem] senhores” ou espíritos livres.
Nessa perspectiva, Nietzsche destaca a necessidade de os indivíduos lograrem uma ação transformadora em relação à sua condição metafísica e subordinada, pois precisam superar a ideia abstrata de sujeito e atingir uma nova consciência. Tal postura só é possível por meio do reconhecimento de como as condições históricas e os mecanismos (castigo, pedagogia, religião, medicina, entre outros) modelaram o humano. Uma das estratégias mais usadas é a do melhoramento. Em “Genealogia da moral”, Nietzsche nos instiga a refletir sobre a importância das condições históricas para então compreendermos o que somos e por que somos de tal modo. Para tanto, lança mão, por exemplo, do argumento segundo o qual o melhoramento, no decorrer da história, tendeu sempre a enfraquecer, desencorajar, refinar, embrandecer (NIETZSCHE, GM, Terceira dissertação, § 21).
Aí reside a virada a qual Nietzsche toma para seu ideal de sujeitos livres, a saber, o devir. Ora, o pensador alemão destaca que, para sermos livres, precisamos ser artistas, inventar, reinventar e criar possibilidades de vida. Para isso, ao que parece, seria preciso ir além das relações de poder e saber, constituir-se “[…] na ignorância daquilo que seu [nosso] tempo considera mais importante” (NIETZSCHE, GC, § 338). Nietzsche, portanto, apresenta possibilidades de criação que se estabelecem na medida em que cada um consegue reconhecer sob quais processos reais foi constituído. Não é possível negar os aspectos físicos da existência, pois é somente com eles que se consegue ser criador de si mesmo (NIETZSCHE, GC, § 335), somente assim se pode ser artista.
De Nietzsche a Foucault: o problema das instituições
Mas quais são as instituições a que, frequentemente, nas partes anteriores, referi-me? Certamente aquelas que, em uma perspectiva vinculada ao senso comum e à religião, dão-nos os supostos caminhos para uma vida reta: a igreja, a escola, a família, mas também o hospital, a prisão, o hospício. No sentido nietzschiano são instituições de melhoramento e, em Foucault, instituições disciplinares.
Todas essas instituições atuaram no sentido de disciplinar, de colocar os indivíduos em uma taxonomia própria em cada tempo. No nosso caso, trata-se de entender como se dá essa relação, especialmente a partir do século XIX. Mas o que nos interessa aqui é entendermos o papel das instituições após o aparecimento do homem e, principalmente, a partir do surgimento das ciências humanas. Essas classificações sempre atenderam uma ordem muito específica, isto é, a ordem cultural. E mais, sempre estiveram vinculadas a uma manutenção da normalidade e da ordem, ou seja, a uma série de políticas disciplinares e normalizadoras, como lembra Foucault na terceira parte de “Vigiar e punir”.
As instituições, portanto, são analisadas, especialmente por Foucault, como reprodutoras de ordens externas e como difusoras dessas mesmas ordens. Foucault não fez análise intrainstitucional, mas percebeu as instituições sempre em ordens pontuais dentro da cultura, especialmente na ocidental. Veja, por exemplo, a análise feita em “A história da loucura”, segundo a qual a racionalidade impôs meios de ordenamento, de manutenção de uma ordem social ilusória.
Conforme Deleuze (2005), os fatores de integração, agentes de estratificação, constituem instituições: o Estado – mas também a família, a religião, a produção, o mercado, a própria arte, a moral… As instituições não são fontes ou essências e não têm essência nem interioridade. São práticas, mecanismos operatórios que não explicam o poder, já que supõem as relações e se contentam em fixá-las sob uma unção reprodutora e não produtora.
As instituições, portanto, não explicam as relações de poder e saber, apenas exercem e colocam em prática tais relações. Tal procedimento se dá em função da manutenção das formas estáticas e paralisadas, próprias para a manutenção de determinada ordem social e certas convenções e tradições.
Assim, o que um projeto de pensar em uma vida criativa e inventiva nos exige é a capacidade de desconstruirmos os muros entre nós e o conhecimento, muros esses construídos pelas instituições. Cumpre-nos, pois, irmos além das palavras, situarmo-nos além dos preceitos e preconceitos difundidos pelas instituições liberais e para além das relações de poder e saber, situarmo-nos em uma via terciária, para lembrar de Guimarães Rosa.
Por uma vida poética e (est)ética:
Vimos até aqui que os modos de subjetivação são ambivalentes, isto é, potencializam a submissão dos seres humanos, pois se dão nas relações de poder e saber, e possibilitam visualizar nichos e momentos de resistência. São nesses momentos de resistência que o sujeito pode experimentar a si mesmo e, de algum modo, vincular-se a uma ascese no que tange às relações de poder e saber. A partir do diagnóstico dessa condição, é possível caminharmos para a última parte de nosso texto para falarmos de uma proposta de vida criativa, ética e estética. Comecemos, agora, com Nietzsche.
Nietzsche aponta para a valorização da vida reivindicando a aceitação de sua inconstância, de sua incerteza. A vida consiste em raros momentos da mais alta significação e de incontáveis intervalos, em que, quando muito, as sombras de tais momentos nos rondam. O amor, a primavera, toda bela melodia, a Lua, as montanhas, o mar — apenas uma vez tudo fala plenamente ao coração, se é que atinge a plena expressão. Pois muitos homens não têm de modo algum esses momentos, e são eles próprios intervalos e pausas na sinfonia da vida real (HH, O homem a sós consigo, § 586).
Esses homens representam a negação da vida, e não sua afirmação; buscam sempre um mundo e uma existência ideais, transcendentes, “neste caso, o caso da vida ascética, a vida vale como uma ponte para essa outra existência” (NIETZSCHE, GM, Terceira dissertação, § 11).
Ao negar a assertiva do ideal cristão, cujo mundo é apenas ponte para o mundo ideal e perfeito, Nietzsche sugere que a existência, para além da minoridade e da verdade produzidas pela humanidade, seja “[…] alicerce e andaime no qual um tipo seleto de seres possa elevar-se até sua tarefa superior e um modo de ser superior […]” (NIETZSCHE, BM, O que é nobre? § 258).
Em “A Gaia Ciência”, o conhecimento é chamado a valorizar a vida.
In media vita – não, a vida não me desiludiu! A cada ano que passa eu a sinto mais verdadeira, mais desejável e misteriosa – desde aquele dia em que veio a mim o grande liberador, o pensamento de que a vida poderia ser uma experiência de quem busca conhecer – não um dever, uma fatalidade, uma trapaça! – E o conhecimento mesmo: para outros pode ser outra coisa, um leito de repouso, por exemplo, ou a via para esse leito, ou uma distração, ou um ócio – para mim ele é um mundo de perigos e vitórias, no qual também os sentimentos heroicos têm seus locais de dança e de jogos.
“A vida como meio de conhecimento” – com esse princípio no coração, pode-se não apenas viver valentemente, mas até viver e rir alegremente! E quem saberá rir e viver bem, se não entender primeiramente da guerra e da vitória? (NIETZSCHE, GC, § 324)
A vida não causa desilusão a quem a tem como meio de ter conhecimento, pois conhecer é vital para a existência. Esta última não tem como ser um mero subterfúgio aos malogros e intempéries, nem o conhecimento será uma mera abstração ou simples erudição.
Parafraseando Nietzsche, é possível dizer que temos necessidade do conhecimento para viver e para agir, não para nos afastarmos da vida, nem para usá-lo como adorno de nossas convenções egoístas e funestas. Do mesmo modo, somente quem conhece a vitória do conhecimento pode viver em sua plenitude, pois entende ser a vida o momento da superação de si mesmo. Em um parágrafo anterior ao citado, o §319, Nietzsche também provoca o ser humano a interpretar sua vida e ser seu próprio experimento.
Como intérpretes de nossas vivências. – Há uma honestidade que sempre faltou aos fundadores de religiões e pessoas do tipo: eles nunca fizeram de suas vivências uma questão de consciência de e de conhecimento. “O que foi que vivi realmente? Que sucedeu então em mim e à minha vulta? Minha razão está suficientemente clara? Minha vontade estava alerta para todos os enganos dos sentidos e foi valorosa ao defender-se de fantasias?”
Nenhum deles fez essas perguntas, nem as caras pessoas religiosas as fazem ainda hoje: elas têm, isso sim, sede de coisas contrárias à razão, e não querem tornar muito difícil a satisfação de tal sede – desse modo vivenciam “milagres” e “ressentimentos” e escutam vozes de anjos! Mas nós, os sequiosos de razão, não queremos examinar nossas vivências do modo rigoroso como se faz uma experiência científica, hora a hora, dia a dia! Queremos ser nossos experimentos e nossas cobaias (NIETZSCHE, GC, § 319).
Essa provocação, além de ser um chamando à criação, é também uma crítica severa a muitas pessoas por nunca terem feito da vida uma via para o conhecimento, e sim para uma fuga dela mesma, do mundo e de si. A existência e o mundo devem ser ato de conhecimento e de experimentação, não de sua negação.
Algo no mesmo sentido é construído por Foucault. Quando se fala de resistência, está a demostrar que os modos de subjetivação são também forma de ascese e de elevação em relação ao poder e ao saber. Tal premissa permite a Foucault, no curso “Em defesa da sociedade”, por exemplo, dizer que o poder transita entre os indivíduos, e não que está em uma esfera acima de nós. Ora, se o poder transita entre os indivíduos, pode-se dizer que eles são capazes de transgredir e de criar possibilidades de libertação.
Contudo convém, a priori, tentar mostrar o que é essa ética e como ela pode ser entendida como uma estética política e uma poética. Segundo Judith Revel (2005), “os temas da ética e da estética da existência estão […] estreitamente ligados”. Tal pressuposição se dá porque há, em Foucault, uma problematização intensiva acerca do que é a moral e o que é a ética.
Como vimos no tópico anterior, a moral nada mais é do que as formas de regular a vida, de ditar as normas feitas pelas instituições. Contrariamente, a ética se dá no campo inverso, pois “[…] corresponde à determinação de uma ‘substância ética’, isto é, a maneira pela qual o indivíduo faz de si mesmo a matéria-prima de sua conduta moral” (REVEL, 2005).
Embora exagerado, o trecho a seguir se faz necessário:
Não acredito que o único ponto de resistência possível ao poder político – entendido justamente como estado de dominação – esteja na relação de si consigo mesmo. Digo que a governabilidade implica a relação de si consigo mesmo, o que significa justamente que, nessa noção de governabilidade, viso ao conjunto das práticas pelas quais é possível constituir, definir, organizar, instrumentalizar as estratégias que os indivíduos, em sua liberdade, podem ter uns em relação aos outros.
São indivíduos livres que tentam controlar, determinar, delimitar a liberdade dos outros e, para fazê-lo, dispõem de certos instrumentos para governar os outros. Isso se fundamenta, então, na liberdade, na relação de si consigo mesmo e na relação com o outro. Ao passo que, se você tenta analisar o poder não a partir da liberdade, das estratégias e da governabilidade, mas a partir da instituição política, só poderá encarar o sujeito como sujeito de direito.
Temos um sujeito que era dotado de direitos ou que não o era e que, pela instituição da sociedade política, recebeu ou perdeu direitos: por meio disso, somos remetidos a uma concepção jurídica do sujeito. Em contrapartida, a noção de governabilidade permite, acredito, fazer valer a liberdade do sujeito e a relação com os outros, ou seja, o que constitui a própria matéria da ética (FOUCAULT, 2006).
Com isso, Foucault não está dizendo que não haja liberdade. Muito pelo contrário, se há formas de dominação, ou pelo menos tentativas, elas existem justamente porque há liberdade e porque há relações de poder, ainda que assimétricas.
Na medida em que nos colocamos e nos reconhecemos historicamente nessas relações e nesses jogos de verdade, somos capazes de problematizar e procedermos com uma dobra. Isto é, uma dobra sobre nós mesmos. Essa dobra nos possibilitará, ao que parece, termos a capacidade de nos libertamos novamente. Mas vejam que todo esse movimento não é estático, pois os operadores do poder também se desenvolvem. Há, portanto, um devir, um eterno vir a ser, um eterno tornar-se livre, um eterno criar-se a si mesmo.
O que é preciso colocar, então, é que a subjetivação, a relação consigo, não deixa de se fazer, mas se metamorfoseia, mudando de modo a ponto de o modo grego tornar-se uma lembrança bem longínqua. Recuperada pelas relações de poder, pelas relações de saber, a relação consigo não para de renascer em outros lugares e em outras formas (DELEUZE, 2005).
Do mesmo modo, deve-se dizer que:
O tema da estética da existência como produção inventiva de si não marca, entretanto, um retorno ao sujeito soberano, fundador e universal, nem a um abandono do campo político […]. A estética da existência, na medida em que ela é uma pratica ética de produção de subjetividade, é, ao mesmo tempo, assujeitada e resistente: é, portanto, um registro eminentemente político (REVEL, 2005).
Seguindo as reflexões de Deleuze e Revel, não seria exagero dizer que os modos de subjetivação, além de promoverem o reconhecimento histórico das formas como nos constituímos como sujeitos, possibilitam-nos o vislumbre de novas práticas, mais criativas e ativas, cuja finalidade é, ao mesmo tempo, promover elevação e transformação individual e social.
Considerações finais ou nem isso?
Na perspectiva aqui adotada, Nietzsche e Foucault ampliam as possibilidades de inserção dos homens e das mulheres no mundo e, ao mesmo tempo, interferem nessas relações. Buscam-se, dessa forma, subjetivações concretas, de novas empiricidades e originalidades, superpondo-as às antigas manifestações metafísicas. Mas o que fizemos até aqui não foi metafísica?
Acreditamos que não, pois não tratamos de professar possibilidades universais ou receitas, mas sim tentamos provocar cada indivíduo a pensar em suas relações e em suas possibilidades de resistência, de libertação. Não há aqui, portanto, a prepotência de se universalizar as formas de experimentação; cada sujeito tem de encontrar suas possibilidades, criar e inventar, ser artista de sua vida.
Nessa medida, Nietzsche e Foucault são quem nos propiciam tal investidura por tratarem as coisas a partir das experiências humanas, ou melhor, dos experimentos que nós fazemos com nós mesmos, muitas vezes conduzidos por representações desconhecidas. Logo, a percepção da subjetividade apresenta-se nas teias de relações históricas, concretas. Mas são também filosóficas, pois questionadoras do modus operandi histórico no qual o sujeito está inserido.
Quando Foucault fala de processos históricos de produção de subjetividade, ele nos propõe, assim como Nietzsche (HH, Das coisas primeiras e últimas, § 2), um filosofar histórico: “[…] não existem fatos eternos: assim como não existem verdades absolutas. – Portanto, o filosofar histórico é doravante necessário […]”.
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Portanto, atitudes afirmativas e criativas acerca da vida são fundamentais para que possamos ser os poetas e as poetizas de nossas vidas, para, entre outras coisas, não nos apegarmos às rotulações mesquinhas e apequenadoras. Mas, quando propomos isso, não nos tornamos transmundanos?