No dia 2 de março, Quarta-Feira de Cinzas, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lançou, oficialmente, o tema da Campanha da Fraternidade de 2022 – Fraternidade e Educação – cujo lema bíblico é “Fala com sabedoria, ensina com amor”. A referida campanha, impulsionada pelo Pacto Educativo Global, convocado pelo Papa Francisco, tem como objetivo promover uma reflexão sobre os fundamentos do ato de educar na perspectiva católico-cristã. É necessário esclarecer que o foco dado à educação não se refere apenas à educação escolar oferecida pelas instituições de ensino credenciadas para tanto, mas ao processo educacional desenvolvido pela sociedade como um todo: a família, a Igreja, o Estado, a escola e entidades sociais comprometidas com a formação ética e social de todos os cidadãos brasileiros.
Embora a Igreja Católica seja a protagonista do evento e ele se dirija à comunidade católica, é necessário evitar uma postura de supremacia da igreja, no sentido de que as reflexões aprofundadas pela campanha não conduzam a uma visão meramente dogmática que ignore os diversos caminhos que levam o homem até Deus, principalmente se levarmos em consideração as bases filosóficas e teológicas que a fundamentam. Isso significa que, quando se trata do amor como o mais importante sentimento humano, do amor à sabedoria como processo indispensável ao conhecimento da verdade, do exercício da fraternidade como forma de garantir as condições dignas de vida a todos os seres humanos e da educação como instrumento essencial à formação de valores e atitudes essenciais à convivência humana, o diálogo e o acolhimento são condições indispensáveis ao fortalecimento da vocação religiosa da pessoa humana, principalmente no mundo atual.
O tema da campanha demonstra a preocupação da CNBB com um mundo mais fraterno e a sua clara intenção de convocar as diferentes instâncias da sociedade a se empenharem na formação cristã da pessoa humana, por meio de um processo educacional fundamentado nos princípios e diretrizes da Teologia e da Filosofia e amparado no amor e na sabedoria.
Considero muito oportuna a escolha do tema e do lema da campanha, principalmente no momento histórico que vivenciamos não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro. Ao avanço do conhecimento científico e da tecnologia não correspondeu um desenvolvimento humano que possibilitasse aos povos do Oriente e do Ocidente uma vida mais íntegra, solidária, pacífica e harmoniosa.
A respeito desse assunto, gostaria de compartilhar com você, meu caro leitor, algumas reflexões apresentadas pelo Papa João Paulo II, na Carta Encíclica Fides et Ratio, de sua autoria. São reflexões muito profundas que eu não poderia esgotar, no contexto deste artigo. Por isso, destaco a seguir, ipsis litteris, algumas passagens dessa encíclica que considero muito elucidativas em relação à temática proposta pela CNBB.
Nessa carta, o Sumo Pontífice nos fala sobre o desejo incansável do homem de conhecer a verdade, ao buscar respostas para as mais diversas indagações que, como ele próprio afirma, “têm a sua fonte comum naquela exigência de sentido que, desde sempre, urge no coração do homem”. Atribui à fé e à razão a missão de orientá-lo na busca da verdade, de modo a elevar, progressivamente, o espírito humano para contemplação da Verdade Suprema, que é Deus. Nesse sentido, entre os recursos de que o homem dispõe para conhecimento da verdade, ressalta o importante papel assumido pela Filosofia, enquanto amor à sabedoria, na formação e desenvolvimento das culturas do Ocidente e do Oriente.
João Paulo II não se refere especificamente a uma determinada concepção de Filosofia, embora reconheça a contribuição valiosa da Filosofia Cristã para a fundamentação da Teologia, mas a uma forma basilar de conhecimento filosófico, “uma forma de pensamento rigoroso” que permita “construir, com coerência lógica entre as afirmações e coesão orgânica dos conteúdos, um conhecimento sistemático”. Considera, portanto, que a Igreja “não pode deixar de apreciar o esforço da razão na consecução de objetivos que tornem cada vez mais digna a existência pessoal”, reconhecendo na Filosofia “o caminho para conhecer verdades fundamentais relativas à existência do homem”, vendo-a como um campo do saber indispensável para o aprofundamento da compreensão das questões da fé e comunicação da verdade do Evangelho não só aos crentes, mas também àqueles que não o conhecem ainda.
Na referida encíclica, o Papa João Paulo II destaca um outro tipo de conhecimento: aquele que é peculiar da fé, o qual “exprime uma verdade que se funda precisamente no fato de Deus que Se revela”, que “deseja dar-Se a conhecer”. A Igreja tem consciência de que esse conhecimento não é um produto de sua reflexão, ela é “depositária duma mensagem que tem a sua origem no próprio Deus” e que foi acolhida pela fé na palavra revelada. Esse conhecimento que provém de Deus é de tal magnitude que “leva à plenitude qualquer outro conhecimento verdadeiro que a mente humana seja capaz de alcançar sobre o sentido da própria existência”.
O Santíssimo Papa afirma que o Concílio Vaticano I esclareceu que a verdade alcançada por meio da reflexão filosófica e a verdade da Revelação não se confundem, uma vez que dizem respeito a duas ordens de conhecimento que se diferenciam por seu princípio e objeto. “A Filosofia e as ciências situam-se na ordem da razão natural, enquanto a fé, iluminada e guiada pelo Espírito, reconhece na mensagem da salvação a plenitude de graça e de verdade (cf. Jo 1, 14) que Deus quis revelar na história, de maneira definitiva, por meio do seu Filho Jesus Cristo (cf. 1 Jo 5, 9; Jo 5, 31-32)”. No entanto, “a fé requer que o seu objeto seja compreendido com a ajuda da razão; por sua vez, a razão, no apogeu da sua indagação, admite como necessário aquilo que a fé apresenta”.
É importante ressaltar aqui que os diversos tipos de conhecimento são resultantes do desejo do homem de obter o saber sobre todas as coisas que existem no mundo e sobre si mesmo como parte integrante desse mundo. Em sua encíclica, João Paulo II afirma: “…o objeto próprio deste desejo é a verdade. A própria vida quotidiana demonstra o interesse que tem cada um em descobrir, para além do que ouve, a realidade das coisas. Em toda a criação visível, o homem é o único ser que é capaz não só de saber, mas também de saber que sabe, e por isso se interessa pela verdade real daquilo que vê. Ninguém pode sinceramente ficar indiferente quanto à verdade do seu saber. Se descobre que é falso, rejeita-o; se, pelo contrário, consegue certificar-se da sua verdade, sente-se satisfeito. É a lição que nos dá Santo Agostinho, quando escreve: ‘Encontrei muitos com desejos de enganar outros, mas não encontrei ninguém que quisesse ser enganado’”.
Nesse aspecto, o Sumo Pontífice faz menção às diversas formas de verdade: “As mais numerosas são as verdades que assentam em evidências imediatas ou recebem confirmação da experiência: esta é a ordem própria da vida quotidiana e da pesquisa científica. Nível diverso ocupam as verdades de carácter filosófico, que o homem alcança através da capacidade especulativa do seu intelecto. Por último, existem as verdades religiosas, que de algum modo têm as suas raízes também na Filosofia; estão contidas nas respostas que as diversas religiões oferecem, nas suas tradições, às questões últimas”.
O compromisso do homem com a verdade não teria valor se ele ficasse restrito ao campo epistemológico. Ele deve promover o bem da humanidade. Assim sendo, a busca da verdade deve ser orientada por valores morais e éticos que conduzam ao aperfeiçoamento e plena realização da pessoa humana, independentemente de seu credo ou religião. “Aquilo que é verdadeiro deve ser verdadeiro sempre e para todos”. Por seu caráter universal, a verdade não é propriedade dessa ou daquela cultura, mas é um patrimônio espiritual da humanidade.
Em resumo, o que a Encíclica Fides et Ratio quer enfatizar é a possibilidade de um maior aprofundamento da inter-relação entre a fé e a razão na perspectiva de uma ajuda mútua, de tal forma que uma exerça, em prol da outra, “a função tanto de discernimento crítico e purificador, como de estímulo para progredir na investigação e aprofundamento” do conhecimento teológico e filosófico.
Tendo em vista as sábias reflexões acima apresentadas, entendo que a proposta dos Bispos da CNBB de promover uma reflexão sobre os fundamentos do ato de educar na perspectiva católico-cristã deve retomar os ensinamentos contidos na encíclica supramencionada e em outras encíclicas que venham esclarecer as questões de fé, tal como a Aeterni Patris, de autoria do Papa Leão XIII. Os fundamentos nelas contidos são essenciais ao propósito de educar para a fraternidade. Verdadeiros educadores não poderão jamais desempenhar a função de educar com sabedoria sem o amor e o compromisso com a verdade, seja ela de natureza científica, filosófica ou teológica. Para tanto, será necessário, superar abordagens fragmentadas, superficiais, preconceituosas e estabelecer um diálogo profundo entre a cultura cristã e outras culturas que também expressam a espiritualidade dos povos do Ocidente e do Oriente. Se a verdade da Revelação se manifestou a todos os homens, é essencial tomar conhecimento da forma como foi interpretada pelas diversas tradições religiosas.
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Finalmente, quero ressaltar que o ato de educar na perspectiva católico-cristã deve ser essencialmente dialógico, uma vez que deve orientar-se pela Verdade e a Ela se dirigir. A Igreja deve assumir a missão de conferir um maior embasamento à religiosidade das pessoas para que elas não fiquem limitadas à liturgia ou aos rituais religiosos. A fé em Deus, por sua própria natureza, exige um testemunho vivo, coerente e, sobretudo, amoroso. Portanto é indispensável repensar o trabalho de evangelização, de modo a possibilitar uma prática educativa interdisciplinar que envolva a contribuição dos diversos ramos do saber, especialmente aqueles vinculados às Ciências Humanas, não só para favorecer a coerência e coesão do discurso educativo, mas também para evitar posturas meramente doutrinárias.
Destaco aqui, em consonância com os ensinamentos do Papa João Paulo II, a necessidade de retomar princípios e conceitos da Filosofia Antiga e Contemporânea que possam contribuir para a compreensão do sentido último da existência humana e, consequentemente, para uma convivência humana pautada nos princípios do respeito à dignidade humana, do amor ao próximo e da cultura de paz.