O texto de hoje tem como tema “Freud e Eliade: um debate sobre o fenômeno religioso”.
No início do século XX, o pai da psicanálise, Sigmund Freud (1856- 1939) dedicou parte de suas pesquisas à natureza da religião. Desenvolveu uma teoria a respeito da dimensão religiosa na vida do homem moderno e qual seria a necessidade de se manter a existência da religião em um período no qual a razão se apresentava como único critério válido para conduzir a Humanidade ao desenvolvimento científico.
Suas reflexões sobre a religião são marcadas pelo cientificismo de sua época. Freud representa a modernidade e sua nova Weltanschauung como uma tentativa de eliminar a ideia da transcendência e voltar-se à imanência do homem, além de reduzir a religião a um produto dispensável.
Dessa forma, colocou em dúvida a consciência religiosa transcendente e elaborou uma nova consciência vazia de sentido religioso, isto é, uma consciência secular. Com a corrente positivista de sua época, Freud defendeu a ideia de que, mediante o desenvolvimento do saber científico, o apego à religiosidade iria desaparecer.
Em “O futuro de uma ilusão”, Freud elaborou uma abordagem da psicologia profunda ao interpretar culturalmente a origem da religião primitiva e o fenômeno religioso na consciência humana.
Para ele, a religião é uma ilusão de um protótipo infantil da Humanidade: assim como uma criança busca a proteção e o cuidado na presença do pai, da mesma forma, os homens, impotentes perante os fenômenos terríveis da natureza, como terremotos, enchentes, vendavais ou deficiências físicas e mentais, procuram, na imagem de um deus paternal e poderoso, a proteção.
Nessa relação também ocorre uma interação entre o pai severo e amoroso com o filho. Freud afirmou que esse processo não se resume apenas a um protótipo infantil, mas também a um processo filogenético.
“O desamparo do homem, porém, permanece e, junto com ele, seu anseio pelo pai e pelos deuses. Estes mantêm sua tríplice missão: exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os homens com a crueldade do Destino, particularmente a que é demonstrada na morte, e compensá-los pelos sofrimentos e pelasprivações que uma vida civilizada em comum lhes impôs” (FREUD, 2006).
O deus humanizado, resultado da neurose psíquica humana, gera dogmas, conflitos e consequências psicológicas e sociológicas negativas para a Humanidade. O complexo paterno desenvolvido pelo homem religioso não passa de uma grande ilusão advinda dos desejos, dos delírios psíquicos gerados pela motivação de acreditar.
Freud, ao afirmar que a religião é uma ilusão, não quis dizer necessariamente que ela fosse falsa, mas que ela existe somente para satisfazer os desejos e as neuroses dos que creem. Assim, a religião não seria uma delusão, embora seja improvável demonstrar a verificação de sua verdade.
Freud prosseguiu em sua crítica à religião ao confrontar a tradição de seus ensinamentos. Duvidou dos fundamentos da tradição religiosa e afirmou que não passavam de relíquias neuróticas das antigas aspirações de fuga da finitude e dos poderes da natureza, fortalecidos na própria realização dos desejos.
Ao ligar essas ideias a uma inteligência superior e assim almejar a uma vida mais tolerável (mesmo com um caminho difícil de trilhar), o homem religioso ordena tudo para algo melhor e transforma o mundo em um espaço protegido para viver. Essa “fuga da realidade” é um obstáculo ao desenvolvimento da Humanidade. Além disso, fundamenta a tradição cultural em princípios não verificáveis racionalmente, conforme o mestre da suspeita diz:
“Tentemos aplicar o mesmo teste aos ensinamentos da religião. Quando indagamos em que se funda sua reivindicação a ser acreditada, deparamo-nos com três respostas, que se harmonizam de modo excepcionalmente mau umas com as outras.
Em primeiro lugar, os ensinamentos merecem ser acreditados porque já o eram por nossos primitivos antepassados; em segundo, possuímos provas que nos foram transmitidas desde esses mesmos tempos primevos; em terceiro, é totalmente proibido levantar a questão de sua autenticidade.
Em épocas anteriores, uma tal presunção era punida com os mais severos castigos, e ainda hoje a sociedade olha com desconfiança para qualquer tentativa de levantar novamente a questão” (FREUD, 2006).
O sentimento religioso que Freud chamou de “sentimento profundamente religioso”, serve como fundamento para alcançar uma experiência interior que dá acesso à “verdade”. O sentimento se caracteriza pela “[…] admissão de insignificância ou impotência do homem diante do universo” (2006).
Freud defendeu que esse sentimento não se encontrava em todos os homens, mas somente o dom da razão. Por isso aqueles que assumiam essa postura compreensiva da realidade eram chamados de irreligiosos, e os que afirmavam ainda existir esse sentimento religioso e que o homem ainda se encontrava ligado à religião não passavam de fingidores, já que há muito tempo nos apartamos dela.
“Na antropologia freudiana, não há lugar para uma relação de transcendência que coloque em destaque a categoria do espírito como constitutiva do ser humano” (ROCHA, 1995).
Na psicologia profunda, o sentimento religioso não passa de um problema psíquico. O homem sempre deseja a maior felicidade, “[…] mas entre seu desejo e a realidade há enorme distância. O infinito, contudo, não passa de um produto do desejo e da fantasia do espírito humano, pois é apenas uma ideia, ou seja, uma ilusão” (ZILLES, 1991).
Freud se esforçou para explicar psicanaliticamente a ideia de que os homens receberam exteriormente uma indicação de como ser no mundo por meio de um sentimento imediato. Para ele, esse sentimento se originava no próprio ego, ainda que os indivíduos atribuíssem a uma experiência com o mundo externo.
Em “O mal-estar na civilização”, Freud denominou esse sentimento como “oceânico” e reconheceu a possibilidade de ele existir em muitas pessoas e se caracterizar como uma origem primitiva do ego.
Talvez devêssemos nos contentar em afirmar que o que se passou na vida mental pode ser preservado, não sendo, necessariamente, destruído. É sempre possível que, mesmo na mente, algo do que é antigo seja apagado ou absorvido — quer no curso normal das coisas, quer como exceção — a tal ponto que não possa ser restaurado nem revivescido por meio algum, ou que a preservação em geral dependa de certas condições favoráveis. É possível, mas nada sabemos a esse respeito. Podemos apenas nos prender ao fato de ser antes regra, não exceção, o passado se achar preservado na vida mental (2006).
Entretanto ele questionou a afirmação desse sentimento ser considerado a fonte da necessidade religiosa. Freud insistiu em defender sua tese que afirma que tal sentimento não passa de uma necessidade infantil da busca da proteção do pai. A origem da atitude religiosa é, na verdade, um sentimento de desamparo infantil. O sentimento oceânico, que defende a “unidade com o universo” é, na realidade, uma “[…] maneira de rejeitar o perigo que o ego reconhece a ameaçá-lo a partir do mundo externo” (FREUD, 2006).
Assim, nesse processo, o homem religioso, em sua tentativa de proteger o ego, encara a realidade como inimiga e uma fonte de sofrimento com a qual não consegue viver. Por isso, para encontrar a felicidade, rompe todo tipo de relação.
Freud citou como exemplo o eremita que rejeita o mundo e tenta construir outro espaço capaz de eliminar todos os seus aspectos insuportáveis, adequando-se, indubitavelmente, aos seus desejos, em uma desesperada busca por fugir da realidade. Freud chamou de religião a essa tentativa de obter a felicidade somada à proteção da realidade que ocorre com grande número de pessoas como delírios de massa:
A religião restringe esse jogo de escolha e adaptação, desde que impõe igualmente a todos o seu próprio caminho para a aquisição da felicidade e da proteção contra o sofrimento. Sua técnica consiste em depreciar o valor da vida e deformar o quadro do mundo real de maneira delirante — maneira que pressupõe uma intimidação da inteligência.
A esse preço, por fixá-las à força num estado de infantilismo psicológico e por arrastá-las a um delírio de massa, a religião consegue poupar a muitas pessoas uma neurose individual. Dificilmente, porém, algo mais. Existem, como dissemos, muitos caminhos que podem levar à felicidade passível de ser atingida pelos homens, mas nenhum que o faça com toda segurança.
Mesmo a religião não consegue manter sua promessa. Se, finalmente, o crente se vê obrigado a falar dos “desígnios inescrutáveis” de Deus, está admitindo que tudo que lhe sobrou, como último consolo e fonte de prazer possíveis em seu sofrimento, foi uma submissão incondicional. E se está preparado para isso, provavelmente poderia ter-se poupado o détour que efetuou (2006).
O mal-estar na civilização ocorre pelo sentimento de culpa que se origina a partir de duas fontes: o medo da autoridade e o medo do Superego. O primeiro se funda na renúncia das satisfações instintivas; o segundo exige a punição quando se tenta ou se pensa praticar atos libidinosos e agressivos.
O homem religioso trata de modo severo a consciência e a obriga a renunciar aos instintos. O sentimento de culpa é, portanto, resultado do medo de perder o amor e de perder a proteção divinizada da autoridade paterna. “A culpa é também um legado histórico, um fenômeno fundamental de nossa vida emocional adquirido pela raça humana como uma herança psíquica transmitida de geração a geração” (PALMER, 2001).
Para que o elo não se rompa e o destino possa ser encarado como vontade divina, é necessário a renúncia ao instinto, aos desejos e o estabelecimento do sentimento de culpa e da punição. “Freud reitera sua concepção de que a civilização, ao impor essas restrições à vida erótica, leva ao recalque, à frustração, ao ressentimento e à neurose” (Ibid). No entanto os homens encontram na religião uma forma de aliviar seus desejos proibidos, conforme nos mostra a psicóloga norte-americana Edna Heidbreder (1890-1985):
“E as mesmas forças subterrâneas que agem nos indivíduos também atuam na sociedade como um todo. De mil maneiras, a energia sexual é sublimada – dirigida para canais aprovados pela sociedade. O mito, as cerimônias religiosas, os tabus tribais, as instituições sociais – todos eles, por meio do simbolismo ou de algum outro disfarce, revelam a satisfação de desejos proibidos.
As práticas de que se servem, embora muito convencionais devido ao uso e à repetição, têm suas raízes no inconsciente e estão carregadas de emoção. Toda a contextura da civilização está marcada pelo padrão freudiano – com conflito, repressão, interposição de resistência e caminhos indiretos para a satisfação (1975).
Em “Totem e Tabu”, Freud defendeu a tese da gênese da religião se encontrar na relação do filho com o pai. Com isso, estabeleceu essa relação ambivalente com a teoria do complexo de Édipo. “[…] O complexo de Édipo torna-se a repetição pessoal (e ontogenética) de algo que se acha embutido no inconsciente, isto é, a experiência universal (e filogenética) do assassinato do pai” (PALMER, 2001).
O complexo de Édipo, juntamente com o complexo de culpa como estrutura psíquica, equivale-se à religião, pois está ligado ao sentimento religioso do totem e do tabu. Os totens simbolizam os complexos de crenças e pensamentos que influenciam os estímulos dos indivíduos e sua estrutura psíquica, já o tabu estabelece uma afetividade em relação ao objeto, isto é, uma relação de zelo e carinho capaz de criar, no homem, comportamentos externos expressos nos ritos.
Além disso, com base na hipótese de Charles Darwin (1809- 1882) sobre o estado social primitivo da Humanidade, que afirma que o homem também viveu em pequenas hordas e, em seu interior, ocorreram sentimentos de ciúme do macho mais velho (o pai) que, por ser o mais forte, proibia a promiscuidade sexual, Freud alegou que essa proibição foi quebrada pelo assassinato do pai pelos filhos. Por causa disso, surge uma marca permanente em todos os humanos: o complexo de Édipo. A esse respeito, John Hick (1922-2012) afirma:
A associação da religião ao complexo de Édipo, que é renovado em cada indivíduo (pois Freud acreditava que o complexo de Édipo era universal), foi estabelecida para explicar a misteriosa autoridade de Deus sobre o espírito humano e os poderosos sentimentos de culpa que tornam os homens submissos a tal fantasia. Assim, a religião é uma volta ao reprimido (1970).
O recalque com a morte do pai e o desejo da mãe que ocorre no homem primevo se expressa na dor e no arrependimento no íntimo da estrutura psíquica e se manifesta na necessidade religiosa, no sentimento de culpa do homem religioso e na carência de prestar culto ao pai assassinado para reatar a relação afetiva e garantir a proteção.
Freud afirmou que essas motivações da experiência religiosa eram, na verdade, motivações psíquicas originadas no sentimento do patricídio e transmitidas milenarmente. “Ao concluir, então, esta investigação excepcionalmente condensada, gostaria de insistir em que o resultado dela mostra que os começos da religião, da moral, da sociedade e da arte convergem para o complexo de Édipo” (FREUD, 1976).
Portanto é o sentimento de culpa que se estabelece nas proibições ou nos tabus do totemismo que originou a religião. O centro dessa neurose, desse sentimento de culpabilidade, é o complexo de Édipo.
Embora Freud reconhecesse que a religião prestou grande contribuição à civilização ao controlar, mesmo que parcialmente, os instintos antissociais e, de certa forma, o sentimento religioso, permitiu que o homem se protegesse dos desastres naturais, do destino e de sua finitude, enfim, das hostilidades humanas, e encontrou, nesse sentimento, uma fonte de referência para sua vida. Apesar de a religião dominar a sociedade, ela não conseguiu trazer felicidade.
“Se houvesse conseguido tornar feliz a maioria da Humanidade, confortá-la, reconciliá-la com a vida e transformá-la em veículo de civilização, ninguém sonharia em alterar as condições existentes.
Mas, em vez disso, o que vemos? Vemos que um número estarrecedoramente grande de pessoas se mostram insatisfeitas e infelizes com a civilização, sentindo-a como um jugo do qual gostariam de se libertar; e que essas pessoas fazem tudo que se acha em seu poder para alterar a civilização, ou então vão tão longe em sua hostilidade contra ela que nada têm a ver com a civilização ou com uma restrição do instinto.
Nesse ponto, será objetado contra nós que esse estado de coisas se deve ao próprio fato de a religião ter perdido parte de sua influência sobre as massas humanas, exatamente por causa do deplorável efeito dos progressos da ciência” (FREUD, 2006).
Como adepto do cientificismo, Freud defendeu que a religião deveria passar pelo tribunal da razão. Com isso, a religião não mais atenderia os apelos e as expectativas da Humanidade e, por conseguinte, seria evidente sua derrocada.
A religião é, então, na perspectiva freudiana, o motivo cultural que obstrui o desenvolvimento da Humanidade, pois, como já mencionamos, consiste em uma fuga da realidade. Representa para a civilização uma neurose, uma ilusão, uma doença do espírito que precisa ser tratada.
A religião consiste em uma neurose infantil que só encontrará sua cura no momento em que for superada pela maturidade. Logo, é preciso substituí-la por uma fonte capaz de nos levar ao conhecimento da realidade fora de nós mesmos. A superação para a maturidade se encontra na realização da ciência. Freud disse que os homens esclarecidos devem buscar no deus logos as resposta de seus anseios. A respeito disso, ele afirmou:
“É possível que a educação libertada do ônus das doutrinas religiosas não cause grande mudança na natureza psicológica do homem. O nosso deus λόγος talvez não seja um deus muito poderoso, e poderá ser capaz de efetuar apenas uma pequena parte do que seus predecessores prometeram.
Se tivermos de reconhecer isso, aceitá-lo-emos com resignação. Não será por causa disso que perderemos nosso interesse no mundo e na vida, pois dispomos de um apoio seguro, que falta a você. Acreditamos ser possível ao trabalho científico conseguir certo conhecimento da realidade do mundo, conhecimento por meio do qual podemos aumentar nosso poder e de acordo com o qual podemos organizar nossa vida.
Se essa crença for uma ilusão, então nos encontraremos na mesma posição que você. Mas a ciência, por meio de seus numerosos e importantes sucessos, já nos deu provas de não ser uma ilusão” (2006).
Mesmo reconhecendo que a maioria dos homens são menos guiados pelo intelecto do que por suas paixões e desejos, Freud acreditava que, caso educados cientificamente para perceber como a religião verdadeiramente é – uma ilusão –, poderia haver o progresso da civilização.
A religião, uma neurose obsessiva universal, poderá ser finalmente superada quando o homem aprender a enfrentar o mundo confiando não mais em suas ilusões, mas no conhecimento científico. O deus logos ajudará a libertar a Humanidade do complexo de Édipo e, consequentemente, fará com que a religião desapareça.
Em contraposição, Mircea Eliade (1907-1986), no decorrer de suas pesquisas, criticou as reflexões de Freud sobre a religião. Afirmou que o psicanalista analisou o homem somente pelo horizonte sentimental e psíquico, sem abordar a dimensão do mundo e da singular realidade existencial.
Essa dimensão não está restrita à libido: o homem não é só desejo. Não se pode reduzir o homem a um ser que é somente determinado pelo prazer. Face a essa postura desmistificadora das abordagens científicas, Eliade afirmou ser uma tarefa fácil reduzir as formas arcaicas de compreensão aos seus elementos sociais, econômicos e políticos. Na verdade, trata-se de uma má interpretação dos significados religiosos.
“A linguagem brutal de Freud e de seus discípulos mais ortodoxos irritou muitas vezes os leitores de bom senso. Na realidade, essa brutalidade de linguagem é o resultado de um mal-entendido: não era a sexualidade em si que irritava, mas sim a ideologia fundada por Freud sobre a ‘sexualidade pura’. Fascinado por sua missão – ele se acreditava o Grande Desperto, quando não passava do Último Positivista, […]” (ELIADE, 1991).
Para o filósofo romeno, os símbolos, as imagens e as narrações mitológicas que servem de base para a psicologia profunda ao abordar o inconsciente humano não são criações neuróticas da psique. Pelo contrário, são formas de responder a uma necessidade de revelar as mais secretas modalidades do ser que fazem parte da Humanidade anterior à História.
Portanto, Freud se equivoca ao tratar essas representações em termos concretos, vazios de sentido. Mesmo que haja um esforço para decifrar esses códigos, ele não se esgota em sua interpretação. Ademais, ele tem uma postura etnocêntrica. Eliade não aceitou a universalidade do complexo de Édipo proposta pelo psicanalista.
O homem religioso se vale dos símbolos para captar a realidade mais profunda das coisas. Existe, nesses símbolos, um movimento dialético de desvelar e de cobrir que não poderia ser expresso por conceitos. Desse modo, “traduzir uma Imagem na sua terminologia concreta, reduzindo-a a um único dos seus planos referenciais, é pior que mutilá-la, é aniquilá-la, anulá-la como instrumento de conhecimento” (ELIADE, 1991).
Por isso a atração que o filho sente pela mãe na teoria do complexo de Édipo é, para Eliade, limitada, pois são compreendidas em sua concretude, tal como ela é, não enquanto imagens. Assim, o desejo de possuir a mãe não quer dizer nada mais do que isso.
“[…] Freud não podia se dar conta de que a sexualidade nunca foi ‘pura’; de que ela foi sempre e em toda a parte uma função polivalente, cuja valência primeira e talvez suprema era sua função cosmológica; de que traduzir uma situação psíquica em termos sexuais não é de forma alguma humilhá-la, pois exceto para o mundo moderno, a sexualidade foi sempre e em toda parte uma hierofania, e o ato sexual, um ato integral” (ELIADE, 1991).
Embora a psicologia profunda possa ser utilizada para compreender melhor o modo de ser do homem arcaico, não são necessárias suas descobertas para comprovar a existência de uma religiosidade no subconsciente do homem moderno. Tampouco são necessárias a atualidade e a força das imagens e dos símbolos.
Mesmo com a alteração espiritual resultante da dessacralização incessante do homem, não se romperam as raízes da sua imaginação. “[…] Todo um refugo mitológico sobrevive nas zonas mal controladas” (1991).
Os símbolos representam uma “abertura” para o transcendente. Eliade contestou a teoria de Freud de querer afirmar a imanência da existência humana e negar, com isso, qualquer forma de transcendência.
“Em suma, a maioria dos homens “sem religião” partilha ainda das pseudorreligiões e mitologias degradadas. Isso, porém, não nos surpreende, pois, como vimos, o homem profano descende do homo religiosus e não pode anular sua própria história, quer dizer, os comportamentos de seus antepassados religiosos, que o constituíram tal como ele é hoje” (ELIADE, 2008).
De acordo com a psicanálise, o “primordial humano” é a primeira infância. A criança vive num tempo mítico paradisíaco. Os estudos de Freud elaboraram técnicas capazes de revelar as origens que causaram o fim da infância e se tornaram o referencial da existência adulta como constitutivos de seu ser.
A religião, bem como a sociedade e a cultura, tiveram seu início com um assassinato primevo. A teoria do totem não foi bem aceita pela comunidade científica. Eliade afirmou que Freud não deu a atenção necessária a essas recordações (nostalgias) ao reduzi-las a fragmentos psíquicos sem significado.
Além disso, considerou a obra freudiana um modismo cultural de sua época: “Freud não se perturbou nem um pouco com essas objeções e, dessa forma, esse ‘romance gótico’ desvairado, “Totem e Tabu”, tornou-se, desde então, um dos evangelhos menores de três gerações da elite cultural do Ocidente” (ELIADE, 1979).
Os símbolos ou mitos que manifestam o sentimento de nostalgia não devem ser interpretados, na sua particularidade, como elementos privados do sujeito, conforme a psicanálise avaliou. O mito é um modelo para o mundo inteiro, como uma revelação de mistérios pelo homem enquanto um ser total. Eliade defendeu que quando isso não ocorre, por causa da interpretação reducionista da psicanálise, o mito se degrada e se transforma em um conto ou em uma lenda.
Embora seja possível reconhecer as funções dos símbolos e os resultados dos acontecimentos da mitologia sobre o plano da atividade inconsciente, não se deve confundir o reconhecimento com a redução. “E quando o psicólogo ‘explica’ uma Figura ou um Evento mitológico, reduzindo-os a um processo do inconsciente, que o Historiador das religiões hesita em seguir, e talvez não seja o único” (ELIADE, 1989). Sobre essa irredutibilidade do sagrado, afirma Mircea Eliade:
“A ‘aura religiosa’ de certos conteúdos do inconsciente não surpreende o Historiador das religiões: ele sabe que a experiência religiosa enquadra o homem na sua totalidade e, por conseguinte, também afeta as zonas profundas do seu ser. Isto não quer dizer que se reduza a religião aos seus componentes irracionais mais simplesmente do que se reconhece a experiência religiosa tal como ela é: a experiência da existência total, que revela ao homem a sua modalidade de ser no Mundo” (Ibid).
Eliade não dissociou o mito da ordem natural, sensual ou cognitiva. O mito é informado pelo cosmos; “amarra” os seres humanos à natureza e à sua imaginação mítica. Por isso não podem operar de nenhum outro modo a não ser por meio dos sentidos e do simbolismo do corpo. Para ele, é sobre a psique que a imaginação mítica é incitada. Portanto o mito não é uma saída para uma psique aberrante ou neurótica, mas uma expressão natural e saudável do inconsciente.
A importância eliadiana das representações dos mitos se confronta com a posição de Freud que, como já vimos, afirmou que o mito (como a religião) é uma doença da psique humana que precisa de uma cura racional.
Freud colocou a origem do mito em um patricídio primal, como expressões superficiais do inconsciente na vida do religioso. Por isso não é confiável. Em contrapartida, Eliade contesta:
“Conclui-se, talvez um tanto depressa demais, que as criações do inconsciente são a ‘matéria-prima’ da religião e de tudo o que ela engloba: símbolos, mitos, ritos etc. […] A homogeneidade entre as personagens e os acontecimentos de um mito e de um sonho não implica a sua identidade de raiz. Nunca se repetirá demais esse truísmo, porque a tentação é sempre a de explicar os universos espirituais pela redução a uma “origem” pré-espiritual” (Ibid., p. 12).
Mesmo com as fortes críticas da psicologia profunda à religião como uma doença do inconsciente humano, Eliade reconheceu que a descoberta de Freud do inconsciente foi, de fato, uma grande contribuição para a Humanidade. Porém “[…] é claro que há que distinguir a grande contribuição de Freud para o saber, isto é, a sua descoberta do inconsciente e da psicanálise, da ideologia freudiana, que é apenas mais uma entre as inúmeras ideologias positivistas” (Ibid., p. 68).
O filósofo romeno utilizou proficuamente a teoria do inconsciente para fundamentar algumas de suas próprias teorias. A permanência do homo religiosus na vida do homem moderno se encontra nas “[…] modalidades arcaicas da vida psíquica, ‘fósseis vivos’ enterrados nas trevas do inconsciente tornavam-se então acessíveis ao estudo graças às técnicas elaboradas pelos psicólogos do profundo” (ELIADE, 1999).
Dentre as teorias fundamentadas nas ideias de Freud, pode-se citar que a pesquisa de Eliade utilizou a beatitude da origem e do começo do ser humano; e a hipótese que afirma que, pela recordação ou mediante um voltar atrás, é possível reviver certos incidentes traumáticos da primeira infância. Com isso, é possível compreender a mentalidade do homem arcaico e se debruçar nas pesquisas sobre seu modus vivendi, pois o inconsciente revela a estrutura cósmica desse ser.
“Pode-se ir mais longe ainda e afirmar não somente que o inconsciente é ‘mitológico’, mas também que alguns de seus conteúdos estão carregados de valores cósmicos; em outros termos, que eles refletem as modalidades, os processos e os destinos da vida e da matéria vivente. Pode-se mesmo dizer que o único contato real do homem moderno com a sacralidade cósmica é efetuado pelo inconsciente que se trate de seus sonhos e de sua vida imaginária, quer das criações que surgem do inconsciente […]” (ELIADE, 2007).
Eliade constatou, a partir das técnicas da psicologia profunda, uma semelhança camuflada do homem arcaico com as ações e os gestos do homem irreligioso. As técnicas modernas da psicanálise mantêm o padrão iniciático do Descensus ad Inferos. Isso se revela na medida em que o paciente precisa regressar ao seu próprio inconsciente para combater seus “monstros”, sair vitorioso e encontrar sua saúde e sua integridade psíquica.
Embora Eliade tenha reconhecido a existência alimentada por pulsões do inconsciente no homem, também afirmou que este, puramente racional, não se encontra na realidade. Por isso a tentativa de Freud de defender uma educação científica para a realidade está fadada ao fracasso. Pois existem nos indivíduos estruturas mitológicas constitutivas do homem religioso: “[…] o mito continua até hoje uma espécie de existência ambígua nas profundezas do inconsciente humano […], em seguida, parece que, em seu ‘mundo’, o homem arcaico se sente mais em casa do que o homem moderno […]” (CULIANU, 2008). Mas isso não quer dizer que os mitos consistem em produtos do inconsciente, já que revelam algo que se manifestou como um modelo exemplar. Seria um erro, portanto, tentar compreender esse fenômeno apenas sob uma perspectiva científica.
“[…] um fenômeno religioso somente se revelará como tal com a condição de ser apreendido dentro da sua própria modalidade, isto é, de ser estudado à escala religiosa. Querer delimitar esse fenômeno pela fisiologia, pela psicologia, pela sociologia e pela ciência econômica, pela linguística e pela arte, etc… é traí-lo, é deixar escapar precisamente aquilo que nele existe de único e de irredutível, ou seja, seu caráter sagrado” (ELIADE, 2008).
A antropologia eliadiana defende que o homem é dotado de transcendência, de uma existência aberta com ricos significados. O inconsciente apresenta, portanto, uma aura religiosa que, no decorrer do tempo, foi ocultada pela História e pelo pensamento científico. “Mas as ‘mitologias’ privadas do homem moderno – seus sonhos, devaneios, fantasias etc. – não conseguem alçar-se ao regime ontológico dos mitos, justamente porque não são vividas pelo homem total […]” (ELIADE, 2008). Resulta daí a crise existencial, que é religiosa, como já mencionamos, vivenciada pelo homem moderno.
Como visto, Eliade deu uma importância muito grande às zonas do inconsciente: “A atividade do inconsciente do homem moderno não cessa de lhe apresentar inúmeros símbolos, e cada um tem uma certa mensagem a transmitir, uma certa missão a desempenhar, tendo em vista assegurar o equilíbrio da psique ou restabelecê-lo” (ELIADE, 2008). Para que isso ocorra e “salve” o homem de sua situação individual, é preciso que ele fique “aberto” ao universal. Porém a abertura só ocorre na medida em que se torna um homem integral. Eliade defendeu que somente nessa perspectiva, o inconsciente, encarado como religião ocultada na mente humana, pode ajudar o homem a enfrentar suas crises.
De certo ponto de vista, quase se poderia dizer que, entre os modernos que se proclamam irreligiosos, a religião e a mitologia estão “ocultas” nas trevas de seu inconsciente – o que significa também que as possibilidades de reintegrar uma experiência religiosa da vida jazem, nesses seres, muito profundamente neles próprios (ibid).
Eliade utilizou a filogenia de Freud para afirmar que ela ainda se encontra na mentalidade do homem moderno, por ser sua raiz, de forma camuflada. “Acreditamos que seja da maior importância redescobrir toda uma mitologia, senão uma teologia, escondida na vida mais ‘banal’ de um homem moderno” (ELIADE, 1991). Basta o homem reconhecer suas raízes religiosas e redescobrir os significados profundos dos símbolos e dos mitos degradados.
Que não nos digam que todo esse refugo não interessa mais ao homem moderno, que pertence a um “passado supersticioso”, felizmente eliminado pelo século XIX; que só serve para os poetas, para as crianças ou para as pessoas do metrô se saciarem de imagens e de nostalgias, mas que (por favor!) deixem as pessoas sérias continuarem a pensar, a “fazer história”: uma tal separação entre o que é “sério na vida” e os “sonhos” não corresponde à realidade (Id., 1991).
Em “Tratado de história das religiões”, o romeno afirmou que a principal diferença do homem moderno em relação ao homem das culturas arcaicas reside na incapacidade do homem irreligioso de viver uma vida orgânica como um sacramento. Tanto a psicanálise quanto o materialismo histórico estudaram e julgaram encontrar etnograficamente as bases do princípio religioso na sexualidade, no trabalho e na nutrição.
Contudo desprezaram o significado e sua função real nos povos arcaicos, pois “[…] para o moderno não passam de atos fisiológicos, ao passo que para o homem das culturas arcaicas são sacramentos, cerimônias por cujo intermédio se comunica com a força que representa a própria vida” (2008). Os rituais simbolizam a união com o sagrado e permitem ao homem arcaico se aproximar da realidade a se inserir no ôntico, ao pertencer ao ser que o liberta do nada, do profano. Esse modo de vida é a Weltanschauung do homem religioso.
No escritos de Eliade percebemos que sua postura contrária à visão unilateral ocidental surgiu a partir de uma busca de um novo modo de explicar o homem para além do pensamento de Kant, de Hegel, de Nietzsche e de outros pensadores marcantes de sua época. Eliade foi crítico de Freud na medida em que suas teorias fragmentaram o homem aos seus condicionamentos fisiológicos e patológicos. Eliade reivindicou o caráter único e irredutível dos fenômenos religiosos, que só a partir do sagrado poderiam ser revelados.
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Dessa forma, o sagrado é a realidade absoluta. Ao criticar a ontologia arcaica, as correntes materialistas apresentaram propostas de pensar a realidade e o homem sem qualquer transcendência. O esquecimento do Ser resultou na crise existencial do homem. Logo, a crise humana é uma crise ontológica na medida em que se dá pela perda do sentido de ser.