Estava na padaria. Estava na padaria com meu filho de quatro anos. Estava na padaria com meu filho de quatro anos e comprava pão. Assinei a nota. Uma assinatura “de nota”. Aquelas que a gente faz até mesmo sem olhar. O pequeno falou, repreensivo: “letras não voam!”.
Fiquei tensa. O que significava aquilo, naquele tom? Letras não voam? Pensei que voassem. Voassem alto como a imaginação das crianças, que são capazes de fazer de cada pê, um pássaro-azul. Que podem transformar os emes em montanhas, essas em lindas e coloridas cobras. Crianças são capazes de fazer, de um simples tê, um avião e voar, voar pelo céu. Cair no mar e se salvar.
Então, por que aquele tom? Por que aquela repreensão? “Letras não voam”? Não? Então, o que fazem as letras? Perguntei, impactada. A resposta veio didática e inflexível: “letras não voam, devem andar em cima da linha!”. Foi assim e com a exclamação no final.
Em cima da linha. Só tem um lugar onde a letra anda de modo tão marcado: num caderno de pauta. E só tem um lugar onde cadernos de pauta são usados: na escola tradicional. Ah, também no contador e no cartório.
No resto do tempo, as letras voam. Aqui mesmo, nesta tela, não temos nenhuma linha. Olhe em volta. Quantas letras vê? Quantas estão andando “em cima da linha”? Andar em cima da linha não é da natureza da letra, é uma imposição arbitrária.
Nas escolas Waldorf, não usamos cadernos de pauta. Lá, as letras voam até que a criança adquira a reta através do amadurecimento de sua própria força interior e, então, naturalmente, a escrita fique em linha reta.
Paciência, fantasia e cuidado são as ferramentas indispensáveis na passagem da imaginação infantil para a abstração intelectual da escrita convencional. Antes de escrever, movimentar.
Os primeiros cadernos estão cheios de cores, de formas, de linhas retas e curvas, onde se adivinham os gestos e os movimentos que se fizeram, bem antes, com o próprio corpo e com o mundo ao redor.
Surge a primeira letra, – o R, por exemplo. E com ela a história dos gnomos e as rochas misteriosas. A criança entra no mundo da escrita pela mão da fantasia que a nutriu nos primeiros anos de vida. Sente-se em casa, não se assusta, consegue avançar com confiança.
Olhei para o meu filho e pensei: temos de mudar de escola, porque, sim, as letras devem voar e encontrar o pouso no coração da criança. E foi assim que mudamos de cidade para mudar de escola. Fomos para uma escola de Pedagogia Waldorf, onde as letras e as crianças eram livres para voar.
Para saber mais:
Rudolf Steiner, sistematizador da Pedagogia Waldorf, diz que devemos evitar uma aproximação direta às letras convencionais do alfabeto utilizadas na escrita e na imprensa. Antes, devemos guiar a criança de uma forma vívida e imaginativa através dos vários estágios que o próprio ser humano percorreu ao longo da história.
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Dá alegria aprender as letras do alfabeto por meio de contos, da aquarela e do desenho que acompanham cada letra. O professor pode desenhar a figura de uma montanha em uma posição que lembre a letra “M”.
Este processo tem sua base no passado da humanidade, na escrita pictórica usada pelo homem antigo, e empresta qualidades vivas e reais a nossos modernos símbolos – qualidades que a criança consegue compreender.