Toda a sua vida vinha sendo uma infeliz incapacidade de se ver nos múltiplos espelhos da existência, porque nunca experimentava um instantinho que fosse de alegria, admiração, uma pontinha mesmo que bobinha de orgulho. Via-se como uma pessoinha chinfrim, sem qualquer graça e, pelo contrário, sempre deparava com os horrores que via condenados pelos influenciadores de comportamentos: baixinho, gordinho, careca, feições em que nem a piedade da maquiagem disfarçava os ausentes atributos de formosura ou algo que disso se aproximasse, mesmo que muito à distância.
Tudo nele era mediano ou esquecível: humor sem graça, cultura de rasa superfície, gostos insossos e vocações para pouco mais que a inexpressividade de um emprego mal pago e habilidades que pouco valor agregavam aos entornos da vida. Seus relacionamentos eram páginas de mesmices e desapontamentos para os raros passantes em sua vida, embora houvesse nele um esforço sincero por cativar os amores de todos e para compensar os desamores de sempre.
Seu refúgio era o sonhar sem limites, muito mais de olhos abertos em vigília e consciência ativa que os sonhos que a mente trêfega das madrugadas trazia para mitigar lacunas e desilusões.
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Sonhava solto com um “eu” que não via em si mas que apreciava muito e para quem tudo era possível, desde o captar do olhar de bela moça de encontros silenciosos no elevador do prédio em que ambos habitavam até intenso brilho como foco das atenções nas rodas de conversa nos bares e eventos sociais para os quais sua presença era reclamada de forma veemente e apreciada como se nele tivessem todos os sabores muito gostosos desse mundo. Sonhos bons de se sonhar!
Agora, por força da metamoforse daquela manhã, magro, corpo de modelo de contraponto às sereias que apenas os photoshops da vida podiam esculpir, cabelos abundantes, nas desejadas ondas como as que se sucediam nas praias de exigentes surfistas, tudo isso encimado por feições próprias da abertura da apresentação do…photoshop, enfim gatérrimo e de coração acelerado pela extraordinária surpresa. Agora era sonho bom de sentir realizado e seu peito exultava naquele momento.
Levantando-se da cama para usufruir o seu novo “eu”, sentiu que tocava um corpo que descobriu ser o de adormecida pessoa que no mesmo instante lembrava-se ser de silenciosa criatura que o acompanhava durante muitos anos. E, olhando-a com mais atenção, experimentou um contraditório sentimento de surpresa e de carinho ao mesmo tempo. Não sabia mas estava no limiar de uma decisão terrível: levantar-se mais rápido e cair no mundo para nele dar vida às felicidades que sabia possíveis doravante ou tornar a deitar-se junto com as lembranças que gravitavam em torno do adormecido corpo ao seu lado.
Na primeira decisão, seria o novo “eu” a ser o epicentro de tudo, apagando-se até os vestígios do “eu” original, não transformado, enquanto que na decisão contrária permaneceriam as suas características que lhe reduziram a muito pouco os níveis de autoestima. O que o fazia hesitar, já que tamanha tinha sido a transformação, em tudo obediente ao que vinha habitando seus sonhos? A resposta estava num quase imperceptível murmúrio, escapado daquele corpo adormecido, que dizia apenas “…amor…” . E foi um momento de descoberta: sempre fora amado pelo que era e não se dera conta disso, daí o refúgio nos sonhos escapistas.
Cuidadosamente, tornou a deitar-se, mais uma vez (certamente a última…) passando os dedos pelas ondas de cabelos tão desejados, ajeitou-se ao lado do corpo adormecido, fechou os olhos e pediu silenciosamente que aquilo tudo fosse apenas um sonho que a piedosa autodefesa da mente humana se encarrega de apagar nos segundos que antecedem o despertar. Ao encaminhar o pedido a não sabia exatamente quem, percebeu que de fato havia completado a mais extraordinária das metamorfoses: a da descoberta de que a mais aguda delas apenas leva a que se venha a ser o melhor do que sempre se foi…para continuar a ser si mesmo, porém ressignificado.
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