Em janeiro de 2024, numa aula de Filosofia da Educação, em São Gabriel da Cachoeira, ouvi um relato de um jovem indígena que me marcou profundamente. O relato foi feito no contexto de uma sala de aula e o debate versava a respeito dos mitos e lendas amazônicas.
“Não existe impressão olfativa mais agradável do que o cheiro da mata, o aroma emanado das folhas, da terra molhada, das frutas maduras, das raízes, das árvores, das plantas, dos peixes, do anzol, do lago, do rio, da canoa, da malhadeira, da correnteza das águas, do choro das ondas, do canto dos pássaros, o senhor já experimentou?
Como é agradável observar os frutos que caem e estouram no chão, as sementes, as castanheiras floradas anunciando muita fruta, os insetos que se alimentam das sementes, os animais que comem os frutos, que se alimentam das folhas, das frutas caídas, do peixe frito, da caldeirada, do vento que espalha o aroma pela mata, o senhor já observou?
Como é terapêutico o barulho das cachoeiras, o equilíbrio das vazantes, as enchentes dos rios, o gemido dos ventos, o segredo da noite, o vento balançando as folhas, o canto dos pássaros, o vaga-lume piscando, a sabiá cantando, a onça caçando, o barulho da floresta, o senhor já ouviu?
De todos os cheiros que compõem a sinfonia da vida, nenhuma perfumaria mais famosa do mundo, como, por exemplo, Chanel, Azzaro, Duty Cabana, Muriel, Paris Bleu, se assemelha ao cheiro da nossa floresta, da nossa gente, da nossa culinária, do nosso cheiro, do cheiro da mata.
Nunca foi e nunca será um problema para nós indígenas cuidar da fauna e da flora, dos jacarés, das serpentes, das sucuris, dos sapos, das rãs, das pererecas, dos tucanos, das araras, do galo-da-serra, das formigas, das mariposas, das borboletas, dos besouros porque o meio ambiente é a nossa casa, o senhor acha que somos inúteis?
O que nos preocupa é a ganância do homem branco, a exploração da terra, do corte de madeira, do garimpo ilegal, da contaminação dos rios, do uso de drogas, do alcoolismo, do chão seco, da cutia morta, da onça faminta, do latido do cachorro, do tiro de espingarda, da poeira dos caminhões, dos tratores, das dragas, da floresta pegando fogo, da plantação de capim, da cerca de arame, da criação de gado, da plantação de soja.
Das lembranças boas e ruins, dos tempos passados, dos parentes distantes, dos meus antepassados, dos meus avós, dos meus pais, dos meus filhos, dos filhos dos meus filhos, dos doentes que perdem socorro, do sofrimento das mães, dos jovens, das crianças, todos os parentes, os Tukanos, os Baniwas, os Yanomamis, os Kayapós, os Arapasos, os Desanas, os Tuyucas, os Barés, precisam de ajuda, precisam ser escutados.
Para o nosso povo falta quase tudo, só não falta à esperança de dias melhores; a certeza de que ainda teremos acesso ao tratamento de saúde, a educação, alimentação, transporte, divertimento; nunca nos faltou gratidão, respeito, compaixão pelos que são bons, pelos irmãos que veem para somar, para nos ajudar, o senhor acredita na gente?
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Somos felizes como somos, do nosso jeito de ser, do nosso jeito de falar, de andar, de cantar, de rezar, de pescar; não precisamos de quase nada do homem branco, somos um povo forte, corajoso, receptivo e bondoso, sabe o que nos define professor? O amor, o amor pela terra, pelas plantas, pelos animais, pelos pássaros, pela natureza, pela cultura, por nossa gente.”