Depois de tirar minha velha máquina de escrever do sótão, percebi as tantas mudanças tecnológicas que aconteceram desde que, há vinte anos, eu a coloquei lá. Quando fechei a tampa da mala de ferro que acompanha o modelo portátil da Smith-Corona supermoderna que ganhei de meu tio escritor na década de setenta, fechei junto um futuro que não tive.
Incrível lembrar dele agora, enquanto procuro pela cidade um técnico que ainda se anime a ajustar a velha máquina, na esperança que ajuste também um pouco da jovem que escrevia nela.
Aqui em casa existe “o buraco negro”, um espaço no sótão, perto de uma das caixas d’água, onde guardamos objetos de pouco ou quase nenhum uso, mas que, por motivos emocionais ou técnicos, não podem ser descartados.
Lá estão as malas grandes de viagem, algumas caixas da coleção de papéis de carta que minha filha fez dos oito aos treze anos, um baú com roupinhas e lembrancinhas dos ex-bebês da casa, os teares, fusos e peças de tecelagem que não estão em uso, algumas outras coisas e ela: a máquina de escrever.
Nesta semana, vendo um filme com meu filho na TV, tive que explicar o que era “aquilo” que o moço estava mexendo. O “aquilo” era uma máquina de escrever e, para ilustrar a explicação, fui buscar minha Smith-Corona portátil que estava no sótão em sua caixa de ferro pesadíssima.
Não me considero uma pessoa apegada ou nostálgica, mas é difícil explicar o que senti. A começar pelo peso. Apesar de “portátil”, a pequena máquina era um peso só, muito diferente do laptop onde agora escrevo.
Nossa noção de portabilidade mudou muito nos últimos tempos. Depois veio a reação do meu filho diante da “peça de museu” que há menos de duas décadas fazia parte do meu cotidiano. Ele se entusiasmou com a mecanicidade rara. A máquina estava sem fita; mesmo assim, desenhou timidamente alguns caracteres no papel.
A força aplicada para fazer com que os tipos batessem no rolo era tamanha que me surpreendi ao lembrar que fazia isso diariamente e não ficava com as dores que o mouse me provoca.
No entanto, o que mais me impressionou foi o seu “olhar” para mim. Como um paciente que houvesse ficado em coma por vinte anos, a pequena Smith-Corona acordou em sua caixa aberta e não me reconheceu. Lembrava claramente da moça roteirista que batia em suas teclas com dois dedos de cada mão.
Lembrava que escrevia sobre seus sonhos e projetos. Sabia da vida que teria a seu lado, compondo peças para teatro, roteiros para cinema e televisão.
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Lembrava dela, mas aquela senhora, naquele estranho tempo presente, apesar de se parecer, não era ela.