Terminamos o artigo anterior afirmando que nem sempre se trata de conhecer o que se é: muitas vezes necessitamos inventar quem queremos ser. Nada é mais ilustrativo nesse aspecto do que o estudo feito pelo filósofo Ian Hacking em seu livro sobre Personalidades Múltiplas. Nele, fica claro que se conhecer ou desconhecer-se não é tanto um fim em si, mas uma ferramenta para a criação de si.
Antes de desenvolvermos nosso tema, é preciso salientar dois pontos. O primeiro e mais simples consiste em entender que em geral esta criação de si não é feita somente pelo indivíduo em questão, mas trata-se de uma criação coletiva. Nada é mais claro do que lembrar como os jeitos de ser de uma criança são nutridos no seio familiar, recompensados ou punidos, estimulados ou desencorajados.
O segundo ponto é que apesar de estarmos usando o exemplo das múltiplas personalidades para falar de autoconhecimento ou autodesconhecimento, este não é um exemplo positivo, pois trata-se de um transtorno que implica em sofrimento psíquico. No entanto, salutar é começar por um exemplo negativo para entender que conhecer-se ou desconhecer-se pode ser tanto um fator de sofrimento quanto um fator de saúde.
No caso do chamado Transtorno de Múltipla Personalidade , há uma cisão da consciência. O debate científico tem apontado inclusive a conveniência de alterar o nome para “Transtorno Dissociativo de Identidade”.
De fato, elementos psíquicos relevantes e insuportáveis a uma consciência ou repulsivos a um senso de identidade são repelidos e acabam sendo absorvidos por uma segunda ou, em casos mais fragmentários, subsequentes identidades.
O caso mais emblemático na arte literária mundial, que tomamos como ilustrativo, é aquele do livro “O Médico e o Monstro”. Isto é, um homem de profissão benevolente acaba relegando impulsos agressivos que tinha e que não combinavam com o seu senso de si para uma segunda identidade.
Central aqui para que uma pessoa opere essa separação da consciência, é o caráter extremamente insuportável de algo da sua vida mental. A incapacidade de integrar um ou mais fatos, desejos ou pensamentos leva esta pessoa a aboli-los de sua consciência mais imediata.
Todavia, como os elementos psíquicos, apesar de extremamente desagradáveis e insuportáveis, são tão essenciais que não podem ser simplesmente abolidos, são abrigados pela criação de um segundo senso de identidade. Tanto a abolição quanto o posterior abrigo são tentativas frustradas de saúde mental.
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Com isso, gostaria de finalizar ressaltando que saúde é a capacidade de integrar e enfrentar competentemente aqueles aspectos de nossas vidas que nos são essenciais. A emoção é sempre o ponto crítico que denuncia o desempenho desta nossa capacidade: sentimentos afirmativos mostram que estamos lidando bem, sentimentos negativos mostram que temos algo a melhorar.