Autoconhecimento Comportamento

O efeito Mandela

Ilustração de um cérebro em frente à uma moça
Gerd Altmann / Pixabay
Escrito por Eu Sem Fronteiras

Você jura de pé junto que uma coisa ocorreu. Aliás, não só você, mas um monte de gente acha o mesmo, garantindo que, sim, aquilo foi verdade. Só após muita discussão – algumas vezes, com os ânimos exaltados – é que vocês acabam constatando que estava todo mundo redondamente enganado, e, na verdade, essa coisa jamais aconteceu.

Mas como, então, tanta gente tem certeza de que é fato? Afinal de contas, é tão claro em nossas memórias, parece tão real! Como pode ser coisa só da minha cabeça se muitas outras pessoas também têm essa convicção?

Pode parecer meio louco, mas isso tem nome – são as falsas memórias coletivas, ou seja, aquelas que são compartilhadas por várias pessoas. Popularmente esse fenômeno é chamado de Efeito Mandela. A origem dessa expressão data de 2010, quando várias pessoas acreditavam que Nelson Mandela teria morrido na década de 1980.

Mas antes, um pouco sobre Mandela

Quando mencionamos o termo “apartheid”, a primeira figura que vem à nossa mente – e não se trata de uma memória coletiva equivocada – é Nelson Rolihlahla Mandela.

O apartheid era um regime racista e segregacionista adotado na África do Sul por quase meio século e contra o qual Mandela lutou, tornando-se um importante líder que buscava uma sociedade igualitária, em especial para a população negra daquele país.

Bandeira da África do Sul com mãos coloridas e brancas pela paz.
frizio / 123RF

Por sua luta, Mandela foi acusado de conspiração, passou quase 30 anos preso, passando, através dos anos, por várias condenações. O cenário do racismo na África do Sul à época – uma herança brutal deixada pelos colonizadores europeus –, com a prisão, a cassação de direitos políticos e o massacre de várias pessoas da comunidade negra sul-africana, ganhou visibilidade mundial. A comunidade internacional buscou a intervenção por meio de sanções ao governo sul-africano, como uma tentativa de acabar com o regime. Dentre essas ações, sanções econômicas, proibição à participação em eventos esportivos mundiais.

Liberdade, ainda que tardia

Em meio a uma grande pressão internacional, que se intensificou a partir dos anos 1980, a situação do país fica completamente insustentável – econômica, política e socialmente. Somente a partir da década seguinte é que toda a pressão surte efeito, levando ao fim do apartheid e à soltura de Mandela.

Mas isso não significou uma transição de governo pacífica. Em 1994, Mandela se torna o presidente da África do Sul, com a missão de erradicar o legado histórico desse regime separatista, em especial para a vida da população negra do país. Algumas das medidas incluíram programas sociais e econômicos para as populações dos guetos, além da aprovação de uma nova Constituição.

Nelson Mandela
radub85 / 123RF

Por sua luta, durante décadas, em prol de uma sociedade igualitária e dos direitos da maioria negra sul-africana e por sua atuação política, Nelson Mandela ganhou o Prêmio Nobel da Paz, em 2013.

Mandela morreu em 5 de dezembro de 2013 – contrariando a falsa memória coletiva, batizada popularmente com seu nome.

Estamos todos loucos?

Voltando ao Efeito Mandela, esse nome se deve a um episódio em que Fiona Broome, pesquisadora de fenômenos sobrenaturais, estava certa de que Mandela havia morrido na prisão, nos anos 1980.

O que poderia parecer um lapso de memória por parte da pesquisadora se mostrou algo mais abrangente, já que ela se deu conta de que não estava sozinha nessa ideia. Muita gente também tinha a impressão de que o líder político já não estava entre nós.

Embora esse efeito já viesse sendo estudado desde a década de 1950, o conceito só ganhou uma certa popularidade despois desse episódio, que deu força para o surgimento do nome, cuja autoria é desconhecida.

Mas calma! Você não está louco. Há uma série de estudos que tentam explicar por que o Efeito Mandela acontece. No entanto, ainda não parece haver uma resposta definitiva.

Ilustração de uma cabeça com peças de um quebra-cabeça
Tumisu / Pixabay

Para alguns psicólogos, trata-se tão somente de uma interpretação que a nossa mente dá a alguns fatos, com influência de inúmeros fatores e auxiliada pela fragilidade da nossa memória, como, por exemplo, quando nosso cérebro se encarrega de “completar” algumas memórias ou mesmo distorcer lembranças e criar fatos que nunca ocorreram.

Nosso cérebro habitualmente realiza esse processo de agregar detalhes ou produzir lembranças que jamais existiram – uma boa parte delas não causa grandes prejuízos. Mas há alguns casos em que isso pode ser perigoso, como, por exemplo, em circunstâncias que envolvam testemunhos de crimes, já que, se eles dependerem somente da memória, podem resultar em injustiça quanto à inocência ou culpa de um acusado.

Essa “fabricação de fatos” é um mecanismo do nosso cérebro para dar conta do excesso de informações que nossa mente absorve. E essa modificação também pode ocorrer acidentalmente quando tentamos nos lembrar de algo e a memória precisa ser acessada pela nossa consciência para, enfim, ser reconsolidada. No meio do caminho pode haver uma distorção.

Múltiplas realidades e falha na Matrix

Para além das questões neurológicas e emocionais, há ainda duas teorias que poderiam explicar esse fenômeno, trazidas por Fiona Broome. A primeira diz respeito à existência de multiversos (múltiplos universos paralelos), cujas realidades seriam semelhantes às que vivenciamos no nosso mundo, porém com pequenas distinções em eventos importantes (como o caso da morte de Mandela).

Já a outra teoria sugere que estamos vivendo dentro de uma simulação de computadores controlada por outras pessoas, basicamente como o que acontece na trilogia das irmãs Wachowski (com a diferença de que, nos filmes, são propriamente as máquinas que nos controlam, e não outros seres humanos). Uma breve “falha da Matrix” poderia ser a causa dessa diferença de lembranças entre as pessoas.

Não era bem o que eu imaginava…

O fato é que essa “desinformação” sobre a morte de Mandela trouxe à tona fatos que jamais aconteceram ou informações que “não eram bem assim”. A seguir, listamos vários exemplos clássicos que provam o quanto nossa mente adora pregar peças na gente.

O lado negro da lembrança

Na icônica cena com Darth Vader e Luke Skywalker, da série de filmes “Star Wars”, podemos jurar que ele diz “Luke, eu sou seu pai”. Na verdade, a fala correta é “Não, eu sou seu pai”.

Darth Vader dizendo que é pai do Luke Skywalker
Divulgação / Star Wars

Elementar, meu caro esquecido

Outra frase que a gente ouviu e repetiu muito por aí é aquela proferida – ou não – pelo célebre detetive Sherlock Holmes a seu fiel escudeiro, Watson: “Elementar, meu caro Watson”. Sendo que, nos livros, essa frase não existe. Ele apenas diz “Elementar”, já tendo chamado seu amigo de “meu caro, Watson”. Talvez por isso nossa mente junte os dois trechos.

Equívoco, equívoco meu

A Rainha Má jamais teria perguntado “Espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu?”. A pergunta certa é: “Mágico espelho meu, quem é mais bela do que eu?”.

Vinheta capciosa

Alguns fãs da EA Sports, fabricante de jogos eletrônicos esportivos, juravam que o slogan pronunciado pelo locutor era “EA Sports: to the game”. Na verdade, a fala é “EA Sports: it’s in the game”. E essa pegava inclusive falantes nativos da língua inglesa.

Pensou errado!

Quando a imagem da escultura “O Pensador”, de Auguste Rodin, vem à mente, muitos têm a plena certeza de que ele está com a mão na testa. Entretanto o homem está com a mão apoiando o queixo.

Campeões do mundo no engano

Na canção “We Are the Champions”, do Queen, quem nunca colocou um “of the world” (“do mundo”) no último verso da música, que atire a primeira pedra. Calma! Você ouviu, sim, essa parte, mas no meio da música (“cause we are the champions of the wolrd”). Na versão de estúdio, no entanto, a canção termina apenas com “cause we are the champions”.

Integranter da banda Queen
Divulgação / Queen

Mas talvez de tanto ouvir seus fãs “enriquecendo” o fim da música, o vocalista Freddie Mercury passou a cantar, provavelmente para não deixar ninguém sozinho nessa. Tanto é que, em diversas apresentações ao vivo, ele finaliza com “of the world”. Campeão na empatia!

No fim, parecia que estava no começo

Outra grande confusão é a atribuição da máxima “Os fins justificam os meios” a Maquiavel, em sua obra “O Príncipe”. Embora essa seja uma frase que resume bastante as intenções por trás do que o escritor propõe, ele jamais a escreveu.

Nunca mais eu vou errar

Só pra concluir, estas aqui você nunca mais vai errar:

A grafia correta é “Looney Tunes”, e não “Looney Toons”.

Outro termo que muita gente passou a vida inteira jurando que estava escrito correto é “Os Flinstones”, a família-título do desenho animado de Hanna-Barbera. Na verdade, grafa-se “Os Flintstones”.

A cauda do Pikachu, do anime “Pokémon”, não tem nenhuma faixa preta.

O androide C3PO, de “Star Wars”, tem uma perna prateada, contrastando com o resto do corpo, que é dourado.

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Ainda assim, você vai continuar se perguntando como é que caiu nas pegadinhas da sua própria mente. Não se preocupe, você não está sozinho nessa, e acontece mais do que gostaríamos. Nosso cérebro vai continuar tentando preencher certas lacunas de nossas memórias, e isso é comum.

Seja como for, hoje em dia, com o auxílio da internet, temos a possibilidade de desmistificar informações como as que exemplificamos aqui. Assim fica muito mais fácil saber o que é fato e o que é fake. Isso é muito útil, ainda mais em uma época em que vivemos rodeados de fake news – das mais inofensivas às mais devastadoras. Fique esperto.

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