Comportamento

O escorpião e a tartaruga

Tartaruga nadando no mar azul
Jess Loiterton / Pexels

Um escorpião chegou à beira de um rio e, ao ver uma tartaruga na água perto de onde se encontrava, disse-lhe:

– Tartaruga, tu me transportarias sobre teu casco para que eu possa atravessar para a outra margem?
– Escorpião, isso não me custaria nada, mas como posso ter certeza de que não me irás matar com teu veneno? Todos sabem como picas quem quer que se coloque ao alcance do teu ferrão.
– Ora, mas como eu poderia fazer isso? Se eu te picar e vires a morrer, eu também afundo e morrerei afogado contigo.

A tartaruga achou que o argumento fazia sentido. Mandou que o escorpião se acomodasse sobre seu casco e iniciou a travessia. Mas antes de chegar ao meio do rio sentiu o mortal ferrão sendo cravado em seu pescoço.

– Escorpião! – falou, já desfalecendo – por que fizeste isso? Em poucos segundos afundarei levando-te junto. Como poderás livrar-te do destino que tu mesmo traçaste?
– Desculpe, Tartaruga – disse o Escorpião, já sendo coberto pela água e sabendo-se também afogado dali a instantes – Mas não consigo me conter: é a minha natureza.

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Por mais absurdo que pareça o modelo de comportamento apresentado na fábula, se transportado para a realidade dos relacionamentos humanos, não duvide: a pessoa-escorpião existe de verdade! Eu já conheci algumas bem de perto, e sei do quanto é difícil oferecer-lhes ajuda para o que quer que necessitem, por mais boa-vontade que se tenha e por mais dolorosa que seja a realidade em que vivam. Isso porque tais pessoas não conseguem superar a própria tendência destrutiva para permitir que seus benfeitores permaneçam ao lado delas, pois, se estes o tentarem, acabarão perecendo junto com estas que são, ao mesmo tempo, vítimas e algozes de si mesmas.

Escorpião preto na natureza
Vera Larina / Shutterstock

Tais pessoas – embora jamais admitam o fato – são marcadas por uma trajetória repleta de frustrações e desejos não satisfeitos que as transformaram em seres humanos amargos, inseguros e revoltados. A amargura faz com que se achem permanentemente vítimas do destino, da má sorte ou das pessoas mais próximas. A insegurança faz com que elas busquem conseguir aquilo que precisam da forma mais rápida que possam: através do jogo, de sorteios, da loteria, de prêmios promocionais, etc., que irá tira-las da situação de desespero em que se colocam na maior parte do tempo, e resolver tudo da noite para o dia, mas nunca acreditam que isso poderia ser obtido por esforço próprio de médio e longo prazo. O resultado que buscam tem que ser instantâneo e cair-lhes nas mãos como mágica. Daí porque não movem uma palha – se exigir alguma persistência ou esforço – para mudar a situação em que se encontram.

Se a inadequação se resumisse a esse aspecto ainda poderia ser contornada pela ajuda de outras pessoas, mas o problema maior é que o estado de angústia e insegurança torna insustentáveis as relações que iniciam, pois tendem a se tornar eternos “receptáculos de benesses”, sem oferecer nada em troca, inclusive sequer demonstrando que o benefício oferecido faz alguma diferença na vida delas. Agem como se o que se deixa de lhes oferecer é pura mesquinharia, e o que lhes é oferecido não é mais que obrigação, pelo tanto que já sofreram na vida!

Agem como se os favores recebidos, como todo auxílio que lhes seja oferecido, nada mais são do que um “direito” seu por todas as carências que já passaram, e a vida está apenas “acertando as contas” com elas. A pessoa que as beneficia não é nem levada em conta, pois é apenas o “portador” que lhes reembolsa o valor da dívida imaginária. E ai do “portador” a cada nova oferta de ajuda, pois a “vítima do destino” a trata como mero gestor de um direito adquirido, e passa o resto do tempo fazendo mais e mais cobranças, usufruindo de tudo que pode e sempre esperando mais, como se fosse obrigação do outro desempenhar o papel de provedor em vida. E vá deixar de faze-lo para ver o que acontece: ela justifica todos os seus erros passados e presentes no “abandono” a que é relegada por todos, na “falta de caráter” daqueles que prometem ajuda-la e depois a abandonam na sarjeta. Em resumo: o “escorpião” irá transformar a vida do seu benfeitor num inferno durante suas crises de alternância entre cobrança de atenção e revolta por abandono.

O motivo mais grave dos conflitos é que tais pessoas podem ser alertadas 10, 20 ou 30 vezes sobre determinado comportamento inadequado, e voltar a repeti-lo indefinidamente, até a exaustão, o que afasta qualquer esperança de mudança na conclusão dos que tentam oferecer ajuda. A característica mais forte da pessoa-escorpião é ser refratária a qualquer tipo de sugestão de mudança. Nunca acha que precisa corrigir nada. Os erros são tratados como se fossem sempre cometidos uma única vez, mesmo que seja a 100a. repetição. Se o conflito chega ao ápice, elas podem apresentar uma melhora momentânea, que leva a crer que desta vez conseguiram entender o mau efeito de suas ações, mas é só por um curtíssimo lapso de tempo. Logo em seguida recomeça todo o processo vicioso que leva ao desespero as pessoas com quem convivem, tornando sua preseça terrivelmente penosa e complicada.

A correção dos erros não é possível porque simplesmente tais pessoas levam sua revolta a tal extremo que qualquer falta apontada é vista como critica destrutiva, vinda de alguém que deseja apenas “humilhá-las”, pisar nelas, coloca-las pra baixo, mostrar-se superior, etc. etc. O sucesso das pessoas próximas lhes é insuportável, pois lembram-lhes o quanto estão distantes do que acham que merecem, e não perdem oportunidade para enfatizar a “sorte” que a outra pessoa teve, a “benevolência” com que foi tratada pelos outros, enquanto elas, coitadinhas, nunca tiveram as mesmas oportunidades e tolerância por parte das pessoas.

Dessa forma fecham portas e mais portas atrás de si, acumulando um enorme histórico de frustrações sobre “esperanças acenadas” seguidas de “promessas não cumpridas”, pela legião de pessoas que tentaram oferecer ajuda e se afastaram depois por conta de todos os problemas em que se veem envolvidas nessa inútil empreitada. Ao final, só restará mesmo aos aspirantes a benfeitores entregar os pontos e saltar do barco, se não quiserem ter suas vidas completamente arrasadas pela natureza autofágica do escorpião, que nunca se ergue, e nem consegue afundar sem levar junto todos à sua volta.

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A desistência é uma decorrência natural e inevitável da relação, verdadeira questão de sobrevivência. Se o afastamento definitivo não for possível, a solução paliativa é manter a maior distância possível, colocar-se o mais distante que se possa do mortal ferrão do escorpião em prol da própria pele e em nome da única alternativa de se preservar um mínimo de paz, já que qualquer tentativa de harmonização será o ponto de partida de novo ciclo de intermináveis conflitos.

Sobre o autor

Luiz Roberto Bodstein

Formado pela Universidade Federal Fluminense e pós-graduado em docência do ensino superior pela Universidade Cândido Mendes. Ocupou vários cargos executivos em empresas como Trimens Consultores, Boehringer do Brasil e Estaleiro Verolme. Consultor pelo Sebrae Nacional para planejamento estratégico e docente da Fundação Getúlio Vargas e do Instituto Brasileiro da Qualidade Nuclear (IBQN) para Sistemas de Gestão. Especializou-se em qualidade na educação (Penn State University, EUA) e desenvolvimento gerencial (London Human Resources Institute, Inglaterra). Atualmente é diretor da Ad Modum Soluções Corporativas, tendo publicado mais de 20 livros e desenvolvido inúmeros cursos organizacionais em suas diferentes áreas de atuação. Conferencista convidado por várias instituições de ensino superior, teve vários de seus artigos publicados em revistas especializadas e jornais de grande circulação, como “O Globo”, “Diário do Comércio” e “Jornal do Brasil”.

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