A exemplo do que me aconteceu pelo menos três vezes antes deste dia em que escrevo, muitos dos que agora me leem, possivelmente, já se sentiram vivendo o primeiro dia do resto de suas vidas. Isso costuma acontecer após algo que, inequivocamente, traça uma linha no caminho que nos chega como divisor de águas entre o antes e o depois. Só que um “depois” bem diferente de qualquer outro, devido à profunda transformação na forma como passamos a enxergar o mundo a partir de então, como quando sobrevivemos a um grande perigo em que muitos tiveram suas vidas precocemente interrompidas. A título de exemplo, citaria a mão que alcança algo em que se segurar no derradeiro instante do afogamento; aquele heroísmo que transforma em milagre o existir do qual já tínhamos desistido; ou a continuidade da vida após a enfermidade que já havia nos condenado à morte.
A percepção desses momentos, ao compararmos a visão do retrovisor com a estrada agora se estendendo à frente — percebida pelo para-brisas — é sempre grande demais para o espaço da folha em que se tenta descrevê-la. E qualquer pessoa que já tenha passado por isso, certamente, irá concordar comigo, pois não se tratam de histórias em que tatuagens se prestem a preservar-lhes a memória, mas de marcas riscadas no âmago do ser a ferro quente, e cujas cicatrizes não perceptíveis ao desavisado olhar denunciam incisões indeléveis produzidas na alma de quem as vivenciou.
Apesar de todo o dito, não me estou referindo ao “day after” que acabei de descrever, mas a um outro em que despertei nesta manhã, ainda mais inusitado, após haver cruzado uma outra linha que transformou em passado remoto a vida que eu conhecera até ontem. Ainda que quase impossível penetrar no universo alheio quando não o tenhamos vivenciado, impus-me o desafio de tentar descrevê-lo num esforço de entender meus próprios sentimentos a respeito.
Aos cinquenta e dois dias de quarentena, munido de máscara e álcool em gel, empreendi minha primeira incursão externa buscando um pouco de alívio para o isolamento. Escolhi percorrer o antes pulsante coração do Rio de bicicleta para documentar os impactos da pandemia através de fotos que certamente o aproximariam das de um mundo pós-apocalíptico. Encontrei locais antes fervilhantes, como a Central do Brasil e a Avenida Rio Branco no seu centro financeiro, lembrando uma cidade fantasma: uma Chernobyl talvez, ou uma Fukushima pós-desastre nuclear. Depois de algumas dezenas de registros, a expectativa era a de capturar imagens do Aeroporto Santos Dumont com aeronaves em solo, lembrando aves de asas congeladas e impedidas de alçar voo.
Na curva da Rio Branco para a Avenida Beira Mar, acompanhando os trilhos do VLT, um fato inusitado me passou a exata impressão de ter sido alcançado de surpresa por um furacão: a imprecisa silhueta de um carro negro passou de raspão pelas minhas costas, como que surgido do nada, e ainda sob efeito do susto me senti colhido por um ônibus que, por me ter alcançado no mesmo sentido, me livrou do impacto frontal ao tempo em que me percebi fisicamente tangenciado pela sua lateral direita em toda a extensão, já que eu seguia rente ao meio-fio. Um ou dois centímetros a mais para a rua e eu não teria escapado às rodas do veículo.
Quanto tempo transcorreu enquanto o sentia raspando meu ombro, cintura e pernas, até a traseira ser vista afastando-se em alta velocidade, eu não saberia precisar. Um segundo? Algumas frações? Impossível dizer, pois só senti o arrasto daquela muralha metálica me levando ao longo de vários metros por atrito direto, até que conseguisse parar a cerca de setenta ou oitenta metros de onde eu estava. A noite já caíra, e as vias absolutamente vazias não me davam conta de que eu cruzara uma pista quase imperceptível seguindo os trilhos do VLT, que destacava apenas a faixa seguinte que se unia a eles após o canteiro que as separava. O corpo me doía do ombro à coxa, no lado do contato direto com toda a lateral do coletivo. A alta velocidade do veículo, que poderia ter-me sido fatal, naquele caso específico, contribuiu para que eu não tombasse sobre o solo. Surpreendentemente eu permanecera em pé apoiado ao guidão da bike, quando o motorista chegou até mim oferecendo-se para levar-me ao hospital. Eu lhe disse que não estava ferido, apesar das dores pelo abalroamento ao longo de toda a extensão do ônibus. Ele insistiu, dada a alta velocidade do veículo em rua sem movimento. Tranquilizei-o dizendo que estava bem, e pedi desculpas, pois assim como os veículos me pareceram vindos do nada na avenida vazia, também eu lhes devia ter passado a impressão de haver surgido de uma outra dimensão. Ambos os veículos haviam cruzado os trilhos sem reduzir a velocidade devido ao vazio da via e a semiobscuridade da hora, e na realidade não havia a quem responsabilizar pelo acidente, ainda que um forte aperto no peito denunciasse meu incômodo por ter-lhe dado causa. Como aconteceu? O que turvara minha contumaz precaução para me expor a um risco tão grotesco quanto aquele?
Eu já me afastara do local por várias quadras, umas dez pelo menos, quando me descobri sem a minúscula pochete que trazia à cintura contendo o frasquinho de álcool, e dei por falta também do celular que lembrava ter guardado no bolso traseiro da calça. A pouca iluminação e a ausência de movimento me favoreciam encontrá-los numa varredura pelo local, razão pela qual voltei lá, e após alguns minutos um reflexo no asfalto permitiu-me achar o celular. Apertei o botão e acendeu. Funcionava! O susto veio meia hora depois, quando a iluminação permitiu que notasse o estrago no aparelho que mostrava vários afundamentos na parte posterior, como se tivesse sido esmagado pelas rodas do pesado veículo.
No longo trajeto de onde tudo se deu até a chegada em casa não saberia dizer exatamente o que se passara. A sensação era de atordoamento, e o de estar sendo “teleguiado” por um tipo de programação automática, pois que o pensamento racional não fluía como antes do acidente exceto por um estranho sentimento de não me encontrar no meu próprio corpo, no mundo que me era familiar, e nem na vida que me pertencia. Parecia-me difícil entender se escapara de ser esmagado pelas rodas do veículo ou se apenas pensava que escapara por não ter conseguido ver meu corpo no asfalto. Simplesmente me deitei tão logo me percebi em meu quarto, acordando hoje com a certeza de haver transposto uma linha divisória, a mais perturbadora que já cruzara em toda a minha existência.
Só nesta manhã, pude refazer mentalmente o trajeto percorrido desde o momento que fui colhido pelo ônibus, e me dei conta que toda lógica apontava para o fato de que eu não mais deveria estar onde me encontro neste instante. Senti-o ainda bem distinto do que se tem como o de um momento pós-traumático, pois que não havia medo, angústia ou qualquer outra coisa além de um profundo estranhamento em relação ao meu próprio corpo, como se o enxergasse à distância. Olhei para minhas mãos e me perguntei se eram as mesmas de antes ou se não passariam de uma ilusão da mente ainda não consciente da morte. E até neste momento, enquanto o descrevo, tal sensação permanece a mesma, como se a revivesse em toda a sua bizarra singularidade.
O que posso afirmar, sem traços de dúvida, é que a pessoa que escreve isto agora não é a que ontem saiu de casa, mas tal convicção não se estende ao fato de estar ou não no mesmo plano em que se via até então. Aliás, todas as certezas de antes parecem não se aplicar a este novo momento, nem dar qualquer garantia de que o tempo se incumbirá de regatá-las. Sei apenas que a necessidade de entender a realidade que os olhos revelam ficou antes da linha divisória. Uma consciência aflora a partir do ponto zero de uma matéria que ela não questiona ser a mesma ou não, ser real ou não, ou se apenas um lótus brotando da lama sem que esta lhe macule as pétalas. Penso, logo existo. Descartes o teria experimentado?
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Meu primeiro dia depois do último, que me liberta de toda explicação. A espécie humana vem de um longo histórico de se arrogar o entendimento de tudo, e iludidos pelos sentidos chegamos a crer que exercemos controle sobre o visível e o invisível, que dominamos tanto o palpável quanto o etéreo, e navegamos entre o sutil e o concreto do mesmo modo que nos apegamos ao ontem, como se pudéssemos impedir a linha que o irá separar do nosso aqui e agora, mesmo não pedindo por nossa permissão. Algo muito maior que as construções humanas nos impõem, uma realidade que não se coloca refém das nossas, nem tampouco se subordina aos nossos insensatos desejos face à amplitude de tudo o que se desconhece. “Carpe diem”, sussurra-nos o Destino, alertando-nos que o estar ou o não estar, conforme o entendemos, é meramente circunstancial, pois o que permanece antes e depois da linha — no ontem ou no amanhã que ela se dispõe a separar — é tão somente o Ser, que resume o Todo. Para que mais?