Quando o assunto é filosofia da religião, o próprio Ricoeur admite que Kant é o seu autor preferido. Um dos textos do filósofo francês, em homenagem ao padre Claude Geffré, reflete justamente sobre ese tema no filósofo alemão. Tal texto pode ser encontrado em sua versão inglesa na obra Figuring The Sacred: Religion, Narrative, and Imagination, sob o título A Philosophical Hermeneutics of Religion: Kant, e em português na obra Leituras 3: Nas Fronteiras da Filosofia, sob o título Uma Hermenêutica Filosófica da Religião: Kant. Nesse texto sobre Kant, encontramos a análise daquilo que o próprio Ricoeur considera ser uma “hermenêutica filosófica da religião”.
O texto kantiano que é base para a análise ricoeuriana é A Religião nos Limites da Simples Razão e é considerado por Ricoeur uma hermenêutica filosófica da religião por três motivos: primeiro, Kant não tem como objeto de investigação Deus, mas a religião. O filósofo alemão trata esse tema sob um triplo aspecto, representação, crença e instituição. Em A Experiência Religiosa: Essência, Valor e Verdade, Carlo Grego enfatiza esse mesmo ponto na constituição de uma filosofia da religião:
O objeto da filosofia da religião não é imediatamente Deus nem a demonstração de sua existência, mas sim a relação do homem com Deus: a religião. Tal objeto, como fato histórico cultural inegável e experiência humana difusa, pode ser investigado e estudado por intermédio de suas objetivações (mitos, símbolos, ritos).
O segundo motivo apontado por Ricoeur é o estatuto da liberdade pressuposta por Kant. Segundo o filósofo francês, “O que põe toda a obra em movimento é a situação de fato do livre arbítrio, do poder de escolher entre a obediência à lei do desejo empírico”. O grande enigma que é gérmen de toda filosofia da religião é justamente como esse livre arbítrio se torna um “servo arbítrio”, no sujeito religioso. Greco também fala sobre esse enigma ao comentar os escritos de Rizzi:
O emergir do horizonte escatológico abre o homem para a liberdade “radical”, que se afirma em contraste com a tendência espontânea do eu. De fato, segundo Rizzi, o horizonte natural da vida do homem é o desejo, isto é, a tendência a expandir-se para realizar-se, impulso essencial e inconscientemente egocêntrico (não egoísta) que nos leva a buscar a nós mesmos em tudo quanto realizamos, tocamos, amamos. Pois bem, a aparição do apelo moral (do “deve”) dissocia o eu da solidariedade essencial consigo mesmo, torna-o independente do dinamismo narcisista que o anima e o alimenta. No espaço escatológico do espírito, o imperativo moral apresenta-se como alternativa à espontaneidade. Liberdade em sentido “radical” é aqui a escolha entre o eu e o imperativo, no horizonte último da existência.
Esta liberdade que reconcilia o sujeito com o imperativo é a tarefa da religião. Tal tarefa nos direciona para uma problemática, a problemática do mal. Essa problemática é fundamental de ser lembrada, pois
[…] o mal é o ponto crítico de todo pensamento filosófico: se ele o compreende, este é o seu maior sucesso; mas o mal compreendido não é mais o mal, ele deixou de ser absurdo, escandaloso; à margem do direito e da razão. Se não o compreende, então a filosofia não é filosofia, se é verdade que a filosofia deve tudo compreender e se erigir em sistema, sem resto fora dele.Assim, em última análise, o ponto crítico da filosofia da religião é o ponto crítico da filosofia em um sentido geral. Como podemos ver, o problema do mal não pode encerrar-se com a filosofia, uma vez que o mal compreendido já não é o mal. Nesse sentido, devemos observar outra área, além da filosofia, que também enfrenta essa problemática, a teologia. O teólogo deve enfrentar o mal a partir da seguinte questão: “(como se pode afirmar conjuntamente, sem contradição, as três preposições seguintes) Deus é todo poderoso; Deus é absolutamente bom; contudo, o mal existe”. Sendo assim, podemos dizer que a filosofia deve levar em conta o escândalo do mal, enquanto a teologia busca compreender a possibilidade do mal perante a existência de um Deus que seja bom. Já a filosofia da religião está entre essas duas realidades, uma vez que questiona: como o sujeito pode superar, por meio de sua liberdade, o mal? Por isso, Ricoeur afirma: “[…] um dos motivos maiores da hermenêutica filosófica da religião é dar a razão, nos limites da simples razão, desse entrecruzamento entre o reconhecimento do mal radical e a assunção dos meios de regeneração”.
Por fim, o terceiro motivo para considerar esse texto kantiano como hermenêutica filosófica da religião é a articulação entre a problemática do mal e a religião em sua tripla temática, representação¸ crença e instituição. O ponto principal desta articulação se dá na investigação do quanto essas temáticas são canais de restauração para o sujeito. Com isso, podemos dizer que a hermenêutica filosófica da religião tem sempre uma função restauradora, isto é, sempre é fonte de esperança. Assim comenta Greco:
Com outras palavras, trata-se de verificar a possibilidade de uma hermenêutica restauradora do sentido da experiência religiosa que, em se movendo “na aragem do sentido interrogado” (Ricoeur), esteja apta a reconhecer o alcance revelador e ontológico dos símbolos do Sagrado e de experimentá-lo conceitualmente. […] Toda religião é oferta de salvação, isto é, libertação do mal na multiplicidade de suas formas e figuras, e, por essa razão, é portadora e, ao mesmo tempo, testemunha de um saber existencial.
Dados tais motivos, interessa-nos as conclusões que Ricoeur tira com a análise desses. São três conclusões que ele apresenta:
1) A filosofia necessita da filosofia da religião por causa da problemática do mal. Ora, é necessária uma hermenêutica, isto é, uma filosofia que investigue o mal e suas próprias complexidades, sem reduzi-lo. O mal investigado pela filosofia da religião é o mal da própria religião, ou seja, a religião desenvolve pensamentos acerca dessa temática que a filosofia por si só não poderia desenvolver.
2) A filosofia da religião é possível por conta da afinidade de algumas temáticas tratadas tanto pela filosofia quanto pela teologia. Uma dessas problemáticas seria o mal.
3) A filosofia da religião não é uma extensão da filosofia, mas ela é atópica, por conta de sua temática própria: “ela dá corpo a uma inteligência da esperança enquanto réplica de um gênero único ao reconhecimento do mal radical”.
Ou seja, a filosofia da religião não seria uma extensão da própria filosofia por ter que contar com uma espécie de pensamento que não argumenta, o pensamento religioso, enquanto o pensamento filosófico é estritamente argumentativo.
Diante desses pontos, questionamos: qual seria a contribuição original de Ricoeur para essa área? Ou melhor, qual seria a contribuição original de Ricoeur para a filosofia da religião? É isso que tentaremos aqui responder.
Primeiramente, para respondermos tal questionamento, devemos demarcar os limites tanto do discurso filosófico quanto do discurso da filosofia da religião. Para isso, um bom caminho é por meio da temática do amor, ou melhor, da dialética entre o amor e a justiça. Por isso, o ensaio Amor e Justiça é de suma importância para nossa investigação. Paul Ricoeur inicia o seu ensaio com a seguinte fala:
Falar do amor é fácil demais ou difícil demais. Como não cair na exaltação ou nas platitudes emocionais? Uma maneira de abrir caminho entre esses dois extremos é tomar como guia um pensamento que medite a dialética entre amor e justiça. Por dialética entendo aqui, de um lado, o reconhecimento da desproporção inicial entre os dois termos e, de outro lado, a busca das mediações práticas entre os dois extremos – mediações, digamos desde já, sempre frágeis e provisórias.
É essa desproporção inicial que Ricoeur aponta que nos interessa. Comecemos com o discurso da justiça. Paul Ricoeur considera a justiça em dois níveis:
(i) no nível da prática social, que se identifica tanto com o aparelho judiciário quanto com o estado de direito; e
(ii) com os princípios de justiça, aqueles que regem as instituições.
O primeiro nível, o da prática, nos revela que a justiça é parte de uma atividade que é comunicacional, isto é, para a força pública aplicar a justiça, ela necessita se comunicar, argumentar:
A justiça argumenta, e de uma forma muito particular, confrontando razões pró ou contra, supostamente plausíveis, comunicáveis, dignas de serem discutidas pela outra parte. Dizer, como sugeri acima, que a justiça é uma parte da atividade comunicacional adquire aqui todo o seu sentido: o confronto entre o argumento diante de um tribunal é um exemplo notável de emprego dialógico da linguagem.
No segundo nível, o dos princípios de justiça, Ricoeur discorre sobre a relação entre igualdade e justiça. Segundo nosso autor, Aristóteles foi o primeiro autor a notar a dificuldade no tratamento igualitário entre pessoas com diferentes bens, propriedades, entre outros. John Rawls retoma esse problema e pede “[…] que o aumento da vantagem do mais favorecido seja compensado pela diminuição da desvantagem do mais desfavorecido” . Temos, com isso, uma base moral para prática da justiça:
O conceito de distribuição, considerado em sua extensão máxima, confere uma base moral à pratica social da justiça, tal como caracterizamos acima, como regulação dos conflitos; nela, de fato, a sociedade é vista como um lugar de confronto entre parceiros rivais; a ideia de justiça distributiva abarca todas as operações do aparelho judiciário, dando a elas a finalidade de manter as pretensões de cada um em limites tais que a liberdade de um não comprometa a do outro.
O ponto principal a ser notado é que a justiça se dirige à ação, porém essa direção se dá de forma argumentativa e é sustentada por um conceito moral, o da justa distribuição, para que todas as partes possam se comunicar com uma certa igualdade. Observemos, então, o discurso do amor e sua distinção em relação ao discurso da justiça.
Se o discurso da justiça é trabalhado por Ricoeur por meio de dois pontos marcantes, o discurso do amor é apresentado sob três pontos marcantes, ou melhor, três pontos marcantes e estranhos ao discurso de justiça. Apresentemos os pontos destacados por Ricoeur:
1º ponto: “O discurso do amor é, antes de tudo, um discurso de louvor” .
Nesse ponto, Ricoeur está reconhecendo duas coisas: primeiro, a ordem distinta ao qual o amor pertence e que Pascal aponta:
Todos os corpos juntos e todos os espíritos juntos e todas as produções não equivalem ao menor movimento de caridade. Isso é de uma ordem infinitamente mais elevada. – De todos os corpos juntos não se pode resultar um pequeno pensamento: é impossível, e de outra ordem. De todos os corpos e espíritos, não se pode extrair um movimento de verdadeira caridade, é impossível, e de outra ordem, sobrenatural.
Com isso, sabemos que “[…] o amor fala, mas numa língua diferente daquela da justiça […]” . Mas como o amor fala? Esta é a segunda coisa reconhecida, o amor, além de ser de outra ordem, é expresso, antes de tudo, por meio do louvor. Observemos o texto de São Paulo:
1ª parte:
Ainda que eu falasse línguas,/as dos homens e as dos anjos,/se eu não tivesse a caridade, /seria como um bronze que soa,/ou como címbalo que tine./Ainda que eu/tivesse o dom da profecia,/o conhecimento de todos os mistérios/e de toda ciência,/ainda que tivesse toda fé,/a ponto de transportar as montanhas,/se eu não/tivesse a caridade,/eu nada seria./Ainda que eu distribuísse/todos os meus bens/aos famintos,/ainda que entregasse meu corpo às chamas,/se não tivesse a caridade,/isso nada me adiantaria.
2ª parte:
A caridade é paciente,/a caridade é prestativa,/não é invejosa, não se ostenta,/não se incha de orgulho./Nada faz de inconveniente,/não procura o seu próprio interesse,/não se irrita, não guarda rancor./Não se alegra com a injustiça,/mas se regozija com a verdade.
/Tudo desculpa, tudo crê,/tudo espera, tudo suporta.
3ª parte:
Quanto às profecias, desaparecerão./Quanto às línguas, cessarão./Quanto à ciência, também desaparecerá./Pois o nosso conhecimento é limitado,/e limitada é a nossa profecia./Mas, quando vier a perfeição,/o que é limitado desaparecerá./Quando eu era criança,/falava como criança,/pensava como criança,/raciocinava como criança./Depois que me tornei homem, /fiz desaparecer o que era próprio de criança./Agora vemos em espelho/e de maneira confusa,/mas, depois, veremos face a face./Agora o meu conhecimento é limitado,/mas, depois conhecerei como sou conhecido./Agora, portanto, permanecem fé,/esperança, caridade,/essas três coisas./A maior delas, porém, é a caridade (BÍBLIA, 1 Coríntios 13, 1-13).
Por meio do texto paulino, podemos notar duas coisas:
(i) o amor (a caridade) é tratado como poesia, “[…] o amor não argumenta, se tomarmos como modelo o hino de 1 Coríntios 13” e (ii) como toda poesia, “[…] [suas] palavras-chave passam por amplificações de sentido, assimilações inesperadas, interconexões inéditas”.
Paul Ricoeur indica que essa amplificação se dá no texto paulino em três etapas, como indicamos na separação das partes na citação acima. Na primeira parte, há uma exaltação do amor; na segunda parte, essa elevação é posta como se tudo já estivesse consumado; e, por fim, na terceira parte, essa elevação é elevada acima de todo limite.
Se identificamos o amor com o discurso poético, estamos a um passo de identificá-lo com os discursos expressos nos Salmos, uma vez que thillin, título dos Salmos em hebraico, seguindo a tradução de Eduardo Brandão, significa “cantos de louvor”. Por isso, segundo Ricoeur, podemos aproximar o hino paulino ao seguinte salmo:
Feliz o homem/que não vai ao conselho dos ímpios,/não para no caminho dos pecadores,/nem se assenta na roda dos zombadores./Pelo contrário:/seu prazer está na lei de Iahweh,/e medita sua lei, dia e noite./Ele é como árvore/plantada junto d’agua corrente:/dá fruto no tempo devido/e suas folhas nunca murcham;/tudo o que ele faz é bem-sucedido (BÍBLIA, Salmos, 1, 1-3).
Ou a este outro salmo: “Iaweh dos Exércitos,/feliz o homem que em ti confia!” (BÍBLIA, Salmos, 84, 13). Por que isso é importante de ser percebido? Porque é esse o mesmo tipo de discurso que aparece nas bem-aventuranças no Novo Testamento, onde fica claro o papel de configuração desse tipo de discurso, por exemplo, “[b]em-aventurados os pobres em espírito,/porque deles é o reino dos céus” (BÍBLIA, Mateus, 5, 3). Estamos perto da segunda estranheza do discurso do amor:
2º ponto: O amor também é visto como imperativo.
Jesus Cristo fala:
[…] Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo entendimento. Esse é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a este: Amará o teu próximo como a ti mesmo. Desses mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas (BÍBLIA, 22, 37-40).Esse mandamento é estranho, pois como erigir um sentimento a um imperativo? Paul Ricoeur vê isso como possibilidade por meio do auxílio dos escritos de Franz Rosenzweig. A ajuda de Rosenzweig vem por meio do diálogo íntimo entre Deus e a alma sozinha como base do mandamento do amor. Assim comenta Ricoeur:
A ideia verdadeiramente genial é então mostrar o mandamento de amar jorrando desse vínculo de amor entre Deus e a alma solitária. O mandamento que procede toda lei é a palavra que o amante dirige à amada: ama-me! Essa distinção inesperada entre mandamento e lei só tem sentido se admitirmos que o mandamento de amar é o próprio amor, que se recomenda a si mesmo, como se o genitivo contido no mandamento de amar fosse ao mesmo tempo genitivo objetivo e genitivo subjetivo; o amor é objeto e sujeito do mandamento; em outras palavras, é um mandamento que contém as condições da sua própria obediência pela ternura da sua instância: ama-me.
Se todos os mandamentos procedem do mandamento do amor e esse provém da relação entre a palavra do amado em direção à amada, entre a relação solitária do sujeito com Deus, os mandamentos que envolveriam um terceiro procedem de uma relação inicial, que é, antes de mais nada, entre um “eu” e um “tu”. Nesse sentido, os mandamentos de Cristo, segundo São Mateus, não seriam:
“Amar a Deus sobre todas as coisas” + “Amar ao próximo como a ti mesmo”
Mas sim:
“Amar a Deus sobre todas as coisas” > “Amar ao próximo como a ti mesmo”
O principal disso se dá na frase final da proclamação desses mandamentos, em que Jesus Cristo afirma: “Desses mandamentos dependem todas as Leis e os Profetas”. Nesse sentido, até mesmo a regeneração que a religião oferece passa por este foro íntimo. Mas, e o amor enquanto prazer, onde que entra nisso?
Este é a terceiro ponto: “[…] o poder da metaforização que se prende às expressões do amor”.
O ama-me! possui um dinamismo, porque ele é capaz de mobilizar os afetos, desde o prazer até a dor, desde a satisfação até o descontentamento. Um exemplo disso podemos encontrar em um dos sonetos de Luís de Camões:
Amor é um fogo que arde sem se ver,/é ferida que dói, e não se sente;/é um contentamento descontente,/é dor que desatina sem doer./É um não querer mais que bem querer;/é um andar solitário entre a gente;/é nunca contentar-se de contente;/é um cuidar que ganha em se perder./É querer estar preso por vontade;/é servir a quem vence, o vencedor;/é ter com quem nos mata, lealdade./Mas como causar pode seu favor/nos corações humanos amizade,/se tão contrário a si é o mesmo Amor?.
É a imagem de um campo de gravitação, de uma espiral ascendente e descendente, “contentamento descontente”, “dor que desatina sem doer”, que corresponde, assim, no plano da linguagem, ao que acaba de ser designado acima como processo de metaforização. É graças a ele que o amor erótico é capaz de significar mais que ele mesmo e visar indiretamente outras qualidades que não o amor (RICOEUR, 2012). Se o amor é capaz de significar algo além, é por conta das expressões fornecidas pelo amor erótico.
De um lado, o discurso da justiça. De outro lado, o discurso do amor. De um lado, um discurso que argumenta. De outro lado, um discurso que vai além de toda argumentação, que nasce de uma relação íntima e que só é possível se expressar poeticamente. O que estes discursos têm em comum? Os dois se voltam para ação. Ou melhor, os dois se encontram na ação. Paul Ricoeur vê no texto de São Lucas uma reflexão sobre esse encontro:
Eu, porém, vos digo a vós que me escutais: Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos difamam. A quem te ferir numa face, oferece a outra; a que te arrebatar a capa, não recuseis a túnica. Dá a quem te pedir e não reclames de quem tomar o que é teu. Como quereis que os outros façam, fazei também a eles. Se amais os que vos amam, que graças alcançais? Pois até mesmo os pecadores amam aqueles que os amam. E se fazeis o bem aos que vo-lo fazem, que graça alcançais? Até mesmo os pecadores emprestam aos pecadores para receberem o equivalente. Muito pelo contrário, amai vossos inimigos, fazei o bem e emprestai sem esperar coisa alguma em troca. Será grande vossa recompensa, e sereis filhos do Altíssimo, pois ele é bom para com os ingratos e com os demais.
Neste trecho bíblico, segundo Ricoeur, podemos ver a reflexão sobre duas lógicas, a lógica da equivalência, do discurso da justiça, e a lógica da superabundância, o discurso do amor. O que é necessário perceber é que o discurso do amor não abole o discurso da justiça, mas o reinterpreta:
[…] o mandamento de amor não abole a Regra de Ouro, mas a reinterpretação no sentido da generosidade e, assim, faz dela um canal não apenas possível mas necessário de um mandamento que, em razão do seu estatuto supraético, só alcança a esfera ética à custa de comportamentos paradoxais e extremos, os mesmo que são recomendados na esteira do novo mandamento […]Nesse sentido, o discurso ético, o da justiça, o da lógica da equivalência, não pode ser colocado de lado. Pelo contrário, tal discurso é condição de possibilidade do discurso do amor, só assim o amor consegue sua extravagância, que faz com que envolva os afetos, destacados na terceira estranheza deste discurso. Além disso, o discurso do amor tem um papel muito importante perante o discurso da justiça, um papel corretivo:
[…] nessa relação de tensão viva entre lógica de superabundância e a lógica da equivalência, esta última recebe de seu confronto com a primeira a capacidade de se elevar acima das suas interpretações perversas. De fato, sem o corretivo do mandamento de amor, a Regra de Ouro seria incessantemente puxada no sentido de uma máxima utilitária cuja fórmula do ut des, dou para que dês. A regra dá porque te deram é corrigida a fim de que da máxima utilitária se salve a Regra de Ouro de uma interpretação perversa sempre possível. É nesse sentido que podemos interpretar a presença das duras palavras de Lucas 6, 32-34, logo depois da reafirmação da Regra de Ouro em 6, 31 e logo antes da reafirmação do novo mandamento em 6, 35Sendo assim, conseguimos compreender o papel que o discurso do amor exerce sobre o discurso da justiça, que seria análogo ao papel do discurso religioso ao discurso filosófico. A conclusão do ensaio Amor e Justiça segue esta direção:
É tarefa da filosofia e da teologia discernir, sob o equilíbrio refletido que se exprime nessas formulas de compromisso, a secreta discordância entre a lógica da superabundância e a lógica de equivalência. É também sua tarefa dizer que é somente no juízo moral em situação que esse equilíbrio instável pode ser instaurado e protegido. Podemos então afirmar de boa-fé e com a consciência tranquila que o projeto para exprimir esse equilíbrio na vida cotidiana, no plano individual, jurídico, social e político, é perfeitamente praticável. Diria inclusive que a incorporação tenaz, passo a passo, de um grau suplementar de compaixão e de generosidade em todos os nossos códigos – código penal e código de justiça social – constitui uma tarefa perfeitamente razoável, embora difícil e interminável.
Ao final desse breve trajeto, já sabemos qual é a tarefa da filosofia da religião, que é refletir sobre a regeneração que o discurso da religião pode oferecer ao sujeito. Sabemos que o discurso filosófico e o religioso possuem problemáticas semelhantes, como a do mal, e esses discursos se encontram na ação. Sabemos a importância do discurso religioso para o discurso filosófico, qual seja, não o deixar cair na crueldade. Por fim, sabemos de outra coisa muito importante: a lógica do discurso filosófico, que é a da justiça, é condição de possibilidade para o discurso religioso.
Apresentemos mais alguns comentários para, com isso, analisarmos alguns trechos dos textos de filosofia da religião de Ricoeur. Primeiramente, temos que ter claro que nesses textos, ele não pretende resolver um problema, mas um chamado. Nesse sentido, este pensamento não procede da filosofia, mas do lugar de onde provém tal chamamento, ou seja, da Palavra. Há uma distinção crucial para Ricoeur entre a resposta dada por um filósofo e aquela dada por um crente: “[…] responder para o filósofo é resolver um problema. Responder, em face da palavra das Escrituras, é corresponder às proposições de sentido provenientes do dado bíblico”.
Porém, isso não significa que a resposta do filósofo não pode ser relevante para o crente, nem que a resposta do crente possa ser irrelevante para o filósofo. O ponto principal a ser demarcado é a distinção, desde o início, entre a especulação de um e do outro. Com isso, seria errado pensar em uma filosofia-teológica, pois deixaríamos de compreender aquilo que os sistemas próprios nos têm a oferecer, tanto o da filosofia, quanto o da teologia. Assim, dois pontos podem ser acrescentados: (i) “[…] o chamamento a que a fé responde de múltiplas formas […] nasce no meio da experiência e da linguagem humana com estruturas próprias […]” e (ii) essas estruturas originárias de experiência e de linguagem perpetuaram até nossos dias graças a um processo ininterrupto de transmissão e de interpretações que sempre implicou em mediações conceituais estranhas às expressões originais da fé de Israel e da Igreja primitiva cristã. Esses dois pontos revelam duas coisas que são de fundamental importância tanto para filosofia quanto para teologia: por um lado, a linguagem e, por outro lado, a tradição, que se perpetuam pela história. Esta semelhança faz com que haja um encontro, porém, tal encontro não deve ser visto como negativo: “Não se trata de uma contaminação lamentável, muito menos de uma perversão, mas de um destino incontornável”.
Assim, já sabemos que a posição apontada por Ricoeur não é a de um teólogo, pois seu interesse não se volta para as teologias constituídas, isto é, para tradição teológica, mas para as expressões de fé bíblica mais primitivas, as quais ele pretende descrever fenomenologicamente. Por consequência, não há espaço para uma atitude apologética por parte de nosso autor, isto é, sua análise não se encaixa nem em um estilo glorificante das Escrituras, nem um estilo de defesa desta. O foco dado é na experiência bíblica e sua linguagem. Mas o que seria essa experiência bíblica, ou melhor, o que seria tal experiência religiosa? Nas palavras do próprio Ricoeur:
De minha parte, as formulações que me são mais familiares e mais próximas são as seguintes: sentimento de “absoluta dependência” para com uma criação que me precede, “cuidado último” no horizonte de todas as minhas preocupações, “confiança incondicional”, que espera apesar de… tudo. São alguns sinônimos do que, na época contemporânea, foi chamado de fé. E todas as formulações que dela se podem dar atestam que fé, como tal, é um ato que não se deixa reduzir a nenhuma palavra, a nenhuma escritura. A esse título, ela marca o limite de toda hermenêutica, porque é a origem de toda interpretação.
Em Leituras 3: Nas fronteiras da filosofia esclarece estas formulações:
Existem, com efeito, sentimentos e atitudes que podem ser chamados de “religiosos” que transgridem esse domínio da representação e, neste sentido, marcam a falta de domínio do sujeito em relação a todo império do sentido. Deram-se nomes a esses sentimentos: sentimento de dependência absoluta (Schleiemarcher); sentimento de confiança sem reservas, a despeito de tudo, a despeito do sofrimento e do mal (Barth e Bultmann); preocupação última (P. Tillich); sentimento de uma economia do dom, com a sua lógica de superabundância, irredutível à lógica da equivalência, como sugiro em meu ensaio Amour et Justice, sentimento de ser precedido na ordem da fala, do amor e da existência (Rosenzweig) .
Desse modo, podemos dizer que fé, para Ricoeur, é um sentimento. Tal sentimento de pertencimento nasce da relação amorosa entre o divino e o sujeito. Com isso, podemos dizer que fé é um sentimento da mesma forma que dizemos que amor também é, dentro de todas as suas complicações próprias, para não cairmos em um certo sentimentalismo. A fé enquanto sentimento aponta para um novo horizonte fenomenológico, pois indica a busca de uma alteridade integral, e, assim como o amor, também mobiliza os afetos.
Esse sentimento, que consiste em maneiras de ser afetado absolutamente, desmente a incapacidade de a fenomenologia abrir a intencionalidade da consciência para uma alteridade integral. A esses sentimentos e a essas afecções podemos localizar o título geral da prece e que se desdobram da queixa até o elogio, passando pela súplica e pelo pedido.
Como podemos notar, a fé é anterior à palavra e é origem de interpretação. Porém, sua investigação não pode ser anterior à linguagem; pelo contrário, devemos sempre investigar a experiência religiosa na linguagem. Assim, devemos ter claro que “[…] é sempre numa linguagem que se articula a experiência religiosa, quer a entendamos num sentido cognitivo, prático ou emocional”. Neste sentido, a fé sempre é mediatizada, ou melhor, é sempre duplamente mediatizada, assim diz Ricoeur em seus fragmentos:
Minha relação com a pessoa da figura de Jesus é, assim, duplamente mediatizada: por textos canônicos, eles próprios carregados de interpretação, e por tradições de interpretação que fazem parte da herança cultural e da motivação profunda das minhas convicções. É nesse sentido que reconheço “aderir” à tradição evangélica reformada. Não há fé “imediata”.
Mas como esta herança cultural e motivação profunda de convicções são fonte da interpretação por parte do religioso? A definição de cristianismo que Ricoeur propõe nos dá algumas pistas para uma resposta: “‘Um acaso transformado em destino por uma opção contínua’: meu cristianismo”. Segundo Victor Chaves de Souza, Paul Ricoeur quer apontar, com isso, que “[o] cristianismo se insere entre o destino e a convicção. É no sentido vivencial do assumir o destino que há a escolha constante”. Assim, o cristão sempre se defronta com a figura de Cristo para assumir sua posição, sua interpretação. É possível perceber este posicionamento apontado no manuscrito de Ricoeur sobre a morte.
Num dos textos de filosofia da religião de Ricoeur, ele inicia com o seguinte esquema:
Duas linhas de pensamento > O desapego perfeito/a confiança na preocupação de Deus
Temos aqui duas linhas de pensamento. Diante da segunda linha de pensamento, vemos a preocupação do cristão diante da morte: será que Deus se lembrará de mim? Pois, como o próprio Ricoeur indica, é mais do que natural a transição no sujeito religioso entre o presente do pensamento “Deus se lembra de mim”, para o futuro “Deus se lembrará de mim”. Por outro lado, a primeira linha de pensamento, expressa nesse esquema, não aponta para filosofia, mas para o pensamento budista. Paul Ricoeur não recorre ao pensamento filosófico, pois reconhece que, nesta problemática o budismo pode trazer resultados bem mais frutuosos: “Aqui o ‘budismo’ pode ajudar, na medida em que em meu tema da atestação pode se ocultar uma resistência ao ‘desapego’. Eu diria hoje: defensiva filosófica do ipse para uma ética da responsabilidade e da justiça. Renúncia ao ipse para uma preocupação para a morte”.
Diante disso, podemos apontar três coisas:
I. Uma possível reflexão, por meio de uma filosofia da religião, do pensamento budista na hermenêutica cristã.
II. O quanto a reflexão da filosofia da religião por Ricoeur é independente de sua reflexão filosófica, isto é, não busca ser uma resposta para as questões levantadas em seus textos filosóficos, pois, em O Si-Mesmo como Outro, o filósofo francês se afasta do pensamento de Parfit, que tende ao budismo, por conta de suas consequências éticas.
III. Uma possível filosofia da religião no pensamento filosófico de Ricoeur, a partir da distinção filosófica entre ipse e idem.
Sobre a possibilidade de uma filosofia da religião a partir da distinção filosófica entre idem e ipse, a linha de pensamento do cristão faz com que levantemos outra questão, que é central para o pensamento de Ricoeur: o nomear Deus. Como já apontamos, a posição de Ricoeur não é a de um teólogo, mas de um filósofo que se abre para aquilo que o texto bíblico pode oferecer. Sendo assim, sua posição é a de um ouvinte da tradição cristã, por isso que o nomear Deus é tão fundamental. Segundo Souza, “Ricoeur suspende os esforços explicativos de questões como ‘Deus existe’, ‘Deus é imutável’, ‘Deus é todo poderoso’ e ‘Deus é a causa primeira’ por não assumir Deus como um objeto, um ser supremo, mas o pensa na experiência da percepção”. Sendo assim, a nomeação de Deus só é possível por conta da tradição: “Se posso nomear Deus, por mais imperfeitamente que seja, é porque os textos que pregaram para mim já nomearam”. O nomear Deus é o resultado da percepção que o sujeito tem de um Outro que realiza o chamado: “A prece vira-se ativamente para este Outro pelo qual a consciência é afetada no plano do sentimento. Em contrapartida, esse Outro que afeta é percebido como fonte de chamado ao qual a prece responde”.
O nomear Deus é central, pois ele está no limite da linguagem e da experiência religiosa, do cristão e da pregação cristã. Aqui, também é onde podemos encontrar um diferencial que existe entre o texto bíblico e outros textos “clássicos”:
Para utilizar outra linguagem, já evocada acima, direi que a fé bíblica tem seus “clássicos” que a distinguem, na opção cultural, de todos outros clássicos. E essa diferença é importante para a nossa investigação sobre o si, na medida em que os “clássicos” do judaísmo e do cristianismo diferem num ponto fundamental dos outros clássicos, desde os gregos até os modernos: enquanto estes alcançam seus leitores um a um sem autoridade outra que não a que estes consentem em lhe conferir, os “clássicos” que enfrentam a fé judaica e cristã o fazem através da autoridade que exercem sobre as comunidades que se colocam sob a regra – o cânone – desses textos. É assim que esses textos fundam a identidade das comunidades que os recebem e os interpretam.
Assim, podemos compreender o motivo ao qual Ricoeur dedica sua reflexão ao cristianismo e não à religiosidade, pois é o cristianismo, com sua autoridade cultural, que está nas raízes culturais de nosso autor. Ele mesmo comenta este fato: “’Se o senhor fosse chinês, haveria pouca possibilidade que fosse cristão’. Certamente, mas vocês estão falando de outra pessoa, não de mim”. Além disso, o estudo da religião só é possível ser feito por meio de alguma das religiões, “[…] a religião é como a própria linguagem, a qual só é realizada nas línguas. A religião não existe e não é realizada senão nas religiões”. Essa é uma das conclusões que Ricoeur tira da situação de buscar estudar a religião por meio de uma religião:
A primeira delas é que é preciso desistir de compor uma fenomenologia do fenômeno religioso considerado em sua universalidade indivisível e que é preciso contentar-se, no início, em traçar as grandes linhas hermenêuticas de uma única religião. Eis porque, na análise que se segue, escolhi permanecer nos limites das Escrituras judaicas e cristãs.
A questão que fica é a seguinte: precisamos ser cristãos para estudarmos o cristianismo? Segundo a linha do pensamento de Ricoeur, podemos dizer que não é necessário, porém ajuda. Ou seja, um cientista da religião que, por exemplo, tem como alvo o estudo do cristianismo não precisa ser cristão, mas precisa de “[…] uma assunção imaginativa e simpática, compatível com o suspense [que o cristão tem] com o engajamento da fé”.
Outra questão que se põe é esta: como podemos, enquanto filósofos, falar da religião? Como resposta a isso, Ricoeur traça a segunda consequência do seu posicionamento:
Segunda consequência: a hermenêutica interna a uma religião não pode pretender se igualar a uma fenomenologia universal do fenômeno religioso senão a favor de uma extensão segunda, regida por um procedimento de transferência analogizante, conduzida aproximativamente, a partir do lugar em que se está no início.
Neste sentido, assim como só é possível pensar em uma filosofia da linguagem com base em filosofias da linguagem, podemos pensar em uma filosofia da religião tendo como base as filosofias da religião e a mesma imaginação e simpatia que apontamos como necessária ao cristianismo, também é necessária em relação às outras religiões, na busca de uma investigação que possamos chamar de filosofia da religião. Com isso, temos a terceira consequência proclamada por Ricoeur, esta inter-religiosidade como horizonte de toda investigação acerca de uma religião, isto é, a filosofia da religião como alvo das filosofias da religião.
Após esta pequena explanação acerca de sua reflexão sobre o cristianismo e suas consequências, Paul Ricoeur analisa a base textual do cristianismo, as Escrituras. O filósofo francês faz isso tendo como auxilio a obra The Great Code, de Northrop Frye. Frye é escolhido por Ricoeur, pois seus escritos tratam a Bíblia como “literatura”, isto é,
[s]em ignorar as aquisições do método histórico-crítico, e desprezando as questões de autor, de fontes, de história da redação, de fidelidade à realidade histórica tal como podemos hoje procurar estabelecê-la, nós nos perguntamos simplesmente com base em suas estruturas textuais internas .Além desse ponto principal, dois pontos são destacados na análise de Frye: (i) a estranheza da linguagem bíblica em relação à nossa linguagem e (ii) a coerência interna que a Bíblia traz e seus próprios critérios de sentido. Essas coisas são importantes, pois permitem que reflitamos sobre a relação que o sujeito pode ter em seu contato com as Escrituras. Assim, o sujeito possui uma total estranheza com a linguagem da Bíblia, por exemplo, o que significariam estes trechos metafóricos: “Iahweh é minha rocha e minha fortaleza” (BÍBLIA, Salmos 18, 3a); “Dize-lhe Jesus: ‘Eu sou o Caminho, a Verdade, a Vida’” (BÍBLIA, João 14, 6a); “Enquanto comiam, Jesus tomou um pão e, tendo-o abençoado, partiu-o e, distribuindo-o aos discípulos disse: ‘Tomai e comei, isto é meu corpo’” (BÍBLIA, Mateus 26, 26). Para se aproximar do querigma, é necessário se aproximar da linguagem poética bíblica através de sua unidade imaginativa: “A unidade imaginativa (e não imaginária, notemos) da Bíblia é assegurada de forma muito mais decisiva pelo funcionamento de parte a parte tipológico dos significados bíblicos […]” . Ou seja, Frye reconhece na Bíblia uma rede ramificada de significados que muitas vezes se correspondem e que permitem uma leitura que vai de alto a baixo, de baixo a alto, e que permitem a decodificação poética de tais trechos. Temos, assim, apontadas por Ricoeur, associações tipológicas que nos guiam em meio à poesia bíblica, como entre as figuras de José e Jesus, entre o êxodo dos hebreus e a ressurreição de Cristo, a lei do Sinai e a lei do Sermão da Montanha, ou, mais claramente, o Gênesis e o prólogo do Evangelho de São João. Observemos esse último exemplo.
Em Gênesis, encontramos: “No princípio, Deus criou o céu e a terra. Ora, a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, e um vento de Deus pairava sobre as águas” (BÍBLIA, Gênesis, 1, 1-2). Já no Evangelho de João, encontramos a seguinte passagem:
No princípio era o Verbo/e o Verbo estava com Deus/e o Verbo era Deus./No princípio, ele estava com Deus./Tudo foi feito por meio dele/e sem ele nada foi feito./O que foi feito nele era a vida,/e a vida era a luz dos homens;/e a luz brilha nas trevas, mas as trevas não a apreenderam (BÍBLIA, João 1, 1-5).
Ricoeur vê no pensamento de James Barr uma complementação ao pensamento de Frye, quando ele diz “[…] na Bíblia os acontecimentos, os personagens, as instituições não se sucedem segundo um modo linear, em que o que sucede substituiria simplesmente o que precede, mas se acumulam e se reforçam mutuamente”. Com isso, podemos dizer duas coisas:
(i) A compreensão da poética bíblica se daria por meio das figuras que formariam uma espécie de “U”, ou seja, quanto mais eu compreendo o livro do Gênesis, mais eu compreenderia o Evangelho de São João e vice-versa;
(ii) assim, por mais que haja uma linguagem “estranha”, há uma autossuficiência no texto bíblico. Por isso, Paul Ricoeur pode afirmar que a Bíblia é um livro que o cristão pode fazer de Espelho:
Na medida em que se põe entre parênteses a eventual representação de acontecimentos históricos reais, e com ela o movimento centrífugo e referencial do texto que caracteriza a linguagem argumentativa e, ainda mais, a linguagem demonstrativa, que em nossa cultura recobriam e recalcaram a linguagem metafórica, a única relação importante com a realidade, num texto poético, não é nem natureza, como num livro de cosmologia, nem o desenrolar efetivo dos acontecimentos, como num livro de história, mas o poder de suscitar no ouvinte e no leitor o desejo de compreender a si mesmo à luz do Grande Código. Precisamente porque o texto não visa nenhum exterior, ele só tem a nós mesmos como exterior, nós mesmos que, recebendo o texto, nos assimilamos a ele e fazemos do Livro um Espelho. Nesse momento, a linguagem, poética em si, se torna querigma para nós.
Assim, podemos chegar a uma conclusão: por conta de seu caráter diferenciado, por não ter em vista nenhum exterior, a Bíblia é, segundo Paul Ricoeur, um livro privilegiado para a busca do si em se autoconhecer. Com isso, na Bíblia, o sujeito se reconhece na nomeação de Deus e, assim, se reconfigura, por isso, as Escrituras são como um Espelho.
Duas observações acerca do texto bíblico devem ser feitas. A primeira observação é a seguinte: “Se alguma unidade pode ser reconhecida na Bíblia, é mais da ordem polifônica do que tipológica. Com isso, Paul Ricoeur quer deixar claro que o texto bíblico não possui os mesmos jogos de linguagem que os nossos jogos de linguagem, os jogos de linguagem do pensamento moderno, isto é, por mais que encontremos nomes como narrativas, prescrições, estas não são como nossas narrativas ou prescrições. Por isso, a unidade bíblica apresentada por Ricoeur através do pensamento de Frye é uma unidade polifônica e não uma unidade tipológica. Mas o que isso quer dizer? Quer dizer que Ricoeur reconhece uma unidade, o nomear Deus, em meio a uma multiplicidade tipológica da Bíblia, que vai além de narrativas, prescrições, entre outros gêneros literários. Para exemplificar isso, Paul Ricoeur afirma:
Numa perspectiva puramente narrativa, Deus é o metaherói de uma metahistória, que engloba mitos de criação, lendas de patriarcas, uma epopeia de libertação, de errância e de conquistas, uma quase historiografia de monarcas e de reinos; de Deus, fala-se aqui na terceira pessoa, no sentido de um superagente (segunda conferência) ou de um superpersonagem (quinta conferência).
Tanto na segunda conferência, quanto na quinta conferência, de O si-Mesmo como Outro, indicadas na citação, Ricoeur aponta o nomear de Deus em um nível que vai além do sujeito, isto é, enquanto os estudos de O Si-Mesmo como Outro indicam um si que é agente e que é personagem, a Bíblia aponta para um Deus que é superagente e superpersonagem. Com isso, o caminho filosófico auxilia-nos na percepção de um outro que não é como eu, na percepção de um agente que não é limitado como os outros agentes, de uma personagem que não é limitada como outras personagens. Assim, o sujeito se vê limitado perante o ilimitado, finito perante a infinitude, o que, por consequência, evita o pensamento do sujeito se pensar como soberano, o que contribui tanto para teologia quanto para própria filosofia. Talvez, o primeiro passo desta filosofia da religião seja bíblico, pois, como afirma Meneses, “[…] a fé bíblica em sua precariedade pode contribuir a que a filosofia hermenêutica não recaia na distorção das filosofias autossuficientes do cogito. No entanto, este primeiro passo não é um argumento, pois, como aponta Victor Chaves Souza, “[o] cristianismo oferece pensamento, mas não argumentação” e esse pensamento só se torna argumentação pela filosofia. Ou seja, a filosofia da religião em Ricoeur não se dá através da descoberta de um sujeito que não é autossuficiente, mas na argumentação em favor deste.
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Paul Ricoeur dá outro exemplo de nomeação de Deus e este exemplo ele promete aprofundar:
Já nos escritos proféticos, Deus é significado como a voz do outro. Por trás da voz do profeta, Deus se apresenta na primeira pessoa como aquele que se dirige ao profeta que fala na primeira pessoa. Voltarei a esse tema na minha última conferência, do ponto de vista da estrutura do envio aqui implicada. Limito-me hoje a frisar outro aspecto da situação, que Deus é nomeado em dupla primeira pessoa, como palavra de outro na palavra do profeta.
Nesse momento da análise, Paul Ricoeur está preocupado em apresentar a unidade polifônica que a nomeação de Deus apresenta. Ainda exploraremos outro momento dessa filosofia da religião, que se dá por meio dessa voz, que é trazida pelo profeta e que se diz que é de Deus. O importante a ser percebido é que não estamos diante de uma ontoteologia, já que “[a] palavra Deus diz mais que a palavra Ser, porque esta pressupõe o contexto inteiro dos relatos, das profecias, das leis, dos escritos da sabedoria, dos Salmos etc.”. Por isso, temos que estar atentos para mais uma observação, relacionada à estrutura dialógica que a Bíblia apresenta.
A segunda observação é a seguinte: “O referente ‘Deus’, dizíamos, não é apenas indicador do pertencimento mútuo a formas originárias da fé, é também o indicador de seu inacabamento” . Ao nomear Deus, temos uma “[…] feliz conjugação da exegese do tipo histórico-crítico e da teologia bíblica” . Ou seja, ao mesmo tempo que buscamos nomear Deus através da nomeação dada historicamente, sabemos que estamos nomeando o inominável. Para abordar isso, Ricoeur encontra auxilio no texto de Claus Westermann, What Does the Old Testament Say About God?, para apresentar as diversas expressões relativas a Deus que estão presentes no Antigo Testamento e como cada uma dessas expressões requer uma contrapartida humana.
A única garantia que temos de que estamos diante de um único e mesmo Deus é sua fala a Moisés: “Eu sou aquele que é”. Além disso, esta fala nos revela que estamos diante de um Deus que se comunica e se reserva, pois o seu nome “[…] o homem não pode verdadeiramente pronunciar, isto é, manter à mercê de sua linguagem”. O Nome de Deus não é um nome que define. Segundo Northrop Frye, esta situação tem ecos nas parábolas do Novo Testamento, em que é apresentada uma realidade que escapa a qualquer descrição. É nesse sentido que Ricoeur comenta:
Assim, o Antigo Testamento diz uma só coisa de Deus, a saber, que ele é Um. Todavia, essa afirmação tem duas vertentes: a do inominável: “Eu sou o primeiro, e eu sou o último” (Isaías 44, 6), mas também a unidade polifônica entre todos os Nomes de Deus: Deus é o mesmo, quer salve, quer abençoe, quer julgue, quer tenha piedade. A continuidade entre os dois Testamentos é assegurada sob esse aspecto pelo vínculo tipológico que os une. Do lado da manifestação do Nome, o relato da Ressurreição faz eco ao Êxodo; do lado da retirada do Nome, as expressões-limite sobre o reino de Deus nas parábolas de Jesus correspondem ao que podemos chamar retrospectivamente de expressões-limite do episódio da sarça ardente. A “novidade” do Novo Testamento por certo não é negável: ela se resume na função de centro que o poema de Cristo confere ao poema de Deus. Mas o impulso em direção ao centro é aquilo que, para uma leitura cristã, trabalha do interior a “unidade imaginativa” da Bíblia. O Novo Testamento identifica esse centro com a pessoa de Cristo.
O ponto principal disto é que Cristo não abole as nomeações de Deus, muito menos a retirada do Nome. Ao contrário, Jesus Cristo intensifica isso com a ideia de Reino dos Céus. Com isso, “[…] o leitor da Bíblia, diremos mais uma vez com Northrop Frye, é finalmente convidado a se identificar no Livro, que procede por sua vez da identificação metafórica entre a palavra de Deus e a pessoa de Cristo”. Ou seja, o leitor da Bíblia é convidado a ouvir a Palavra de Deus, ou melhor, a voz do Outro, e ver seu reflexo Nela.
Em O si “mandatado”, na escolha dos relatos da vocação profética, Paul Ricoeur destaca a figura do si respondente, que é configurada a partir dos relatos de vocação profética. Nosso autor escolhe os relatos das vocações proféticas, pois em tais relatos encontramos uma resposta “[…] estritamente pessoal. Com isso, a questão posta é a seguinte: como este si, chamado a ser profeta, responde ao seu chamamento?
Nilo Deyson Monteiro Pessanha