Venho por meio deste artigo versar sobre alguns apontamentos da relação educação infantil e Paulo Freire que podem passar despercebidos. Os conhecimentos proferidos por Paulo Freire são cabais e incontestáveis, disso temos certeza. Suas aplicações na Educação Infantil, contudo, não são tão discutidas quanto os saberes designados e proferidos por educandos da EJA, por exemplo. Assim, faz-se libertador e crucial reconhecer Freire como educador responsável por tornar a educação infantil mais humana e mais palpável, concordam?
Sobre a prática docente, Freire explana em Pedagogia da Tolerância (1995) sobre a luta de mudar, que é difícil, porém não impossível. Mudar a compreensão de mundo, acreditar na boniteza, reinventar-se e tornar-se um professor mais preocupado com a realidade de seus alunos, um professor-propulsor – um termo que faz referência à Real e Corbellini (2017) – também na educação infantil é necessário.
Quando reconhecemos as crianças como detentoras de saberes importantes, como sujeitos de direitos e de habilidades tão significativas quanto às de jovens ou adultos, quando as enxergamos como capazes de aprender e de ensinar desde seus nascimentos, estamos sendo freireanos como deveríamos ser. E se, por vezes, como educadores, esquecemo-nos do quão preciosa é a primeira infância, robotizados em atividades empobrecidas e sem sentido, não devemos, então, nos redescobrir?
As proposições para a educação infantil podem nunca sair do papel sem um governo preocupado em ter a educação básica como prioridade.
Gestores inquietos, professores com rica formação e dedicados, alunos curiosos, nada disso será o bastante sem recursos para prover o essencial e o complementar na educação infantil de qualidade. Isso Freire já nos indicava há tempos, que sem investimento astucioso e substancial na educação como um todo, até nos faremos educandos e educadores, mas abatidos sob nossas existências.
Até mesmo o interesse mais aflorado esmorece frente ao descaso. Daí a necessidade da esperança de que tanto nos fala o mestre. Quase quero escrever “Esperança”, com “E” maiúsculo! A esperança não ingênua, não frívola, mas fecunda e embasada em princípios sólidos. Disse ele em Pedagogia da Esperança (1992, p. 5):
“Não quero dizer, porém, que, porque esperançoso, atribuo à minha esperança o poder de transformar a realidade e, assim convencido, parto para o embate sem levar em consideração os dados concretos, materiais, afirmando que minha esperança basta. Minha esperança é necessária, mas não é suficiente. Ela, só, não ganha a luta, mas sem ela a luta fraqueja e titubeia.”
Trago aqui para complementar o ensejo o relato de um menino de dois anos e meio a quem chamarei de Santiago. Santiago é criado pela mãe, divorciada, e vive com ela e um irmão mais velho cuja diferença de idade da sua é relativamente acentuada. A mãe concluiu o ensino fundamental e trabalha como diarista em período integral. Santiago convive na turma de maternal 1 de uma escola municipal, também em período integral.
A situação econômica da família é modesta. Ele possui tênue dificuldade de entrosamento com os colegas, gosta de brincar sozinho (porque assim está acostumado) e maravilha-se com brinquedos aos quais não tem acesso em casa, que são para ele uma novidade.
A família de Santiago valoriza a educação (sua mãe quer que ele tenha mais condições de estudo do que ela teve), mas Santiago vai à escola principalmente porque a mãe não tem com quem deixá-lo durante o dia (o filho mais velho frequenta o ensino médio de uma escola estadual e não poderia cuidar do irmão, porque faz estágio em uma empresa privada no contraturno).
A vaga conquistada na educação infantil foi muito concorrida e festejada, pois antes Santiago precisava acompanhar a mãe em seu trabalho e não eram todas as empregadoras que se agradavam disso.
Para tantos Santiagos no mundo, que a escola precisa ser acolhedora e estimuladora, desde cedo. Se mães como a dele são a maioria, as que prezam por uma vida escolar de sucesso de seus filhos, melhores do que as suas próprias, mas não podem dedicar tempo ou instrução em ajudá-los, Paulo Freire nos diz que a escola e o educador preocupados, não alheios a suas realidades, são improteláveis. Também para Santiago, disserta Freire ao afirmar que (1996, p. 35):
“O meu respeito de professor à pessoa do educando, à sua curiosidade, à sua timidez, que não devo agravar com procedimentos inibidores exige de mim o cultivo da humildade e da tolerância. Como posso respeitar a curiosidade do educando se, carente de humildade e da real compreensão do papel da ignorância na busca do saber, temo revelar o meu desconhecimento? Como ser educador, sobretudo numa perspectiva progressista, sem aprender, com maior ou menor esforço, a conviver com os diferentes? Como ser educador, se não desenvolvo em mim a indispensável amorosidade aos educandos com quem me comprometo e ao próprio processo formador de que sou parte?
Não posso desgostar do que faço sob pena de não fazê-lo bem. Desrespeitado como gente no desprezo a que é relegada a prática pedagógica, não tenho por que desamá-la e aos educandos. Não tenho por que exercê-la mal. A minha resposta à ofensa à educação é a luta política consciente, crítica e organizada contra os ofensores. Aceito até abandoná-la, cansado, à procura de melhores dias. O que não é possível é, ficando nela, aviltá-la com o desdém de mim mesmo e dos educandos.”
A pedagogia da infância se faz, então, vital para que se concebam crianças como sujeitos culturais, históricos e dialógicos, disse Angelo, em 2006. Freire dialogou com a classe trabalhadora como ninguém, e também com os filhos desses trabalhadores, crianças.
Ele sabia dos anseios da infância tanto quanto dos sonhos dos jovens e adultos, pois tinha olhar sensível e (re)conhecia a alma das pessoas verdadeiramente – não é exagero comentar. Sonhou e concretizou a escola problematizadora e humana enquanto esteve à frente da Secretaria de Educação do estado de São Paulo (1989–1991), e como educador de sempre.
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Percebe pequenos Santiagos, Vicentes, Julianas, como detentores de saberes e não depositórios de informações transferidas pelo professor. Paulo Freire era, acima de tudo, um visionário à frente de seu tempo, que concebeu, dentre tantos entendimentos, ideias inovadoras no plano educacional e tato ao lidar com o próximo, independentemente de sua idade.
Com carinho e respeito,
Uma educadora em (constante) construção.
Referências:
ANGELO, Adilson de. A pedagogia de Paulo Freire nos quatro cantos da educação da infância. In: I CONGRESSO INTERNACIONAL DE PEDAGOGIA SOCIAL, 1., 2006. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo. Disponível em: http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC0000000092006000100001&lng=en&nrm=abn. Acesso em: 08 de abril de 2018.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
__. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
__. Pedagogia da Tolerância. São Paulo: Paz e Terra, 1995.
CORBELLINI, Silvana; REAL, Luciane Magalhães Corte. A trajetória do curso: caminhar em várias direções. In: REAL, Luciane Magalhães Corte; MARQUES, Tânia Beatriz Iwaszko (org). Psicopedagogia e TICs. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2017.