Amigo leitor, antes de iniciar sua leitura, quero esclarecer que este meu artigo, assim como muitos outros, é resultado de meses de pesquisas, nos quais montamos referências e estruturamos o texto de forma que se pudesse compreender em sua totalidade ao acessar fontes de referência para pesquisas futuras. Dito isso, você pode visitar meu perfil aqui no portal Eu Sem Fronteiras e ler outros artigos, bem como pesquisar no Google “Filósofo Nilo Deyson Monteiro” para ver muitos trabalhos acadêmicos publicados em diversas plataformas e portas. Sem outras delongas, uma boa leitura e anote referências para futuras pesquisas em relação ao que faltar ao longo deste trabalho acadêmico, que tomou muito tempo nosso.
A história da filosofia é – à primeira e à segunda vista – uma história de textos e recepções. Filósofos e, desde aproximadamente um século, filósofas são remetidos ao meio da escrita para assegurar e arquivar seus pensamentos diante do esquecimento. A crítica de Platão à escrita e a recusa socrática a ela tornaram possível, de fato, uma consciência crítica em relação à forma escrita (Schriftlichkeit) do pensar; a filosofia institucionalizada não pode existir, porém, sem textos e sua elaboração filológica – sem o arquivo de sua história.
Isso não é de pouca importância: a filosofia, seja qual for, reconhece a necessidade de se manifestar em textos. Somente assim ela pode, de modo constante e invariável, ser acessível a quaisquer leitores, somente assim ela pode ser sempre recebida, por meio de traduções, em outros países, em outros continentes, em outras línguas. Não indevidamente, Karl Marx fala, no lugar mais destacado, do advento da “literatura mundial” (Weltliteratur). Dessa forma, seria o caso de questionar, o que certamente já foi feito, se a colonização do mundo pela Europa também não foi uma colonização por meio da escrita (Jacques Derrida) – e qual papel os textos filosóficos desempenharam nessa colonização. Sobretudo, seria o caso de questionar qual significado o texto, o livro, teve ou ainda tem para a disseminação de determinada concepção de espírito e formação (Bildung) no mundo. A discussão prosseguiu, entrementes, rumo à pergunta pelas vantagens e desvantagens da digitalização. Sem dúvida, a World Wide Web é um meio diverso em relação à escrita e ao livro. As transformações na recepção da filosofia e da literatura são ainda difusas, mas palpáveis. Mas isso deve ser refletido em outro lugar.
O estabelecimento da história da filosofia como uma história de texto e escrita significa em si o favorecimento da “obra” ou também do “discurso” como suas formas centrais de manifestação. Assim a filosofia se objetifica (vergegenständlicht sich), e deve mesmo se objetificar, a fim de poder se tornar, em geral, o objeto de uma recepção.
Essa tendência da filosofia para sua própria objetificação (Verobjektivierung) é um problema. Faz recordar a pergunta pelo que é a filosofia.
Interessa-me qual atitude de recepção e qual hábito de recepção decorreram e decorrem dessas objetificações; como, portanto, já há séculos sedimenta-se um acesso à filosofia que coloca em seu centro a(s) escrita(s), o texto, a “obra”, o “discurso”. Além disso, eu gostaria de perguntar – de maneira evidente – se o mais íntimo da filosofia mesma, aquilo que ela não apenas quer ser, mas que propriamente também deve ser para ser ela mesma, é abrangido, ou ainda, ao menos, tocado nessa sedimentação da recepção. Com isso, eu não me refiro aqui, de modo algum, exclusivamente a uma compreensão europeia de uma filosofia tendente ao saber (episteme). Estou consciente de que o modo de falar de um “mais íntimo da filosofia” – de sua alma, por assim dizer – não é desprovido de problemas. Gostaria, contudo, de me fixar nele.
Para tornar mais próximas essas questões, eu gostaria de me referir a um processo que, de fato, não se deixa encontrar tão frequentemente na história da filosofia dos séculos XX e XXI. Quero tratar da recepção sobretudo institucional da filosofia de Martin Heidegger; uma recepção que, todavia, teve também um efeito para além das fronteiras da percepção institucional-acadêmica. Minha tese é a de que a publicação dos “Cadernos Negros” e também a das muitas anotações a “Ser e tempo” (sobretudo no volume 82 da “Obra Completa”) modificaram, de modo muito singular, a recepção dessa filosofia. Por seu turno, esse processo, ou essa modificação, lança luz sobre o problema aludido do modo como a filosofia é, em geral, e do modo como ela pode ser recebida.
Quando em 2013/2014 vieram a lume os primeiros “Cadernos Negros”, assim posteriormente denominados pelo próprio Heidegger, a discussão frenética girava, sobretudo, em torno das declarações antissemitas neles presentes. Elas cindiram os debatedores em mais ou menos três campos: estavam presentes os apologistas ortodoxos de Heidegger, que, como Friedrich-Wilhelm von Herrmann, colocavam em dúvida, em geral, o status dos “Cadernos Negros” como uma peça a ser levada a sério no interior do pensar heideggeriano e também prontamente consideravam justificada “crítica aos judeus” as passagens que se referem a eles e ao judaísmo; havia também os críticos ortodoxos de Heidegger que, como Emmanuel Faye, faziam simplesmente culminar no antissemitismo e, no nacional-socialismo, a totalidade do pensar heideggeriano; uma terceira via de acesso tentou considerar seriamente os pensamentos antissemitas (ou não antissemitas) sem elevá-los ao critério de uma prestação geral de contas. Ela foi classificada pelas outras duas interpretações como pertencente, respectivamente, ao lado rival. É impossível não ver momentos ideológicos em ambas as posições dogmáticas. Não é improvável que elas pertençam a uma mais ampla cisão social.
A disputa mesma em torno do posicionamento de Heidegger a respeito do judaísmo teve uma influência sobre a recepção acadêmica desse pensar. Em tempos de political correctness e de cancel culture, é improvável que a repreensão (Abkanzelung) inicialmente pública de um filósofo permaneça sem efeito sobre sua recepção acadêmica. Por isso se tornou mais difícil estudar na Alemanha o pensar heideggeriano para além de preconceitos ou juízos político-morais. Isso pode ser diferente em outros países, em outras culturas universitárias. Na China, as discussões sobre o antissemitismo têm um significado diferente daquelas que ocorrem na Europa.
Eu sou da opinião, todavia, de que a recepção de Heidegger foi abalada menos pelas posições político-morais do filósofo do que pelo novo estilo do pensar testado nos “Cadernos Negros” e sua nova, até então desconhecida, forma de expressão, pois com a publicação dos nove volumes dos “Cadernos Negros” na “Obra Completa”, de Heidegger (assim como suas próprias interpretações de “Ser e tempo”), fica evidente que o posicionamento do pensar heideggeriano em torno de uma ou duas obras principais, em torno de “Ser e tempo” e das “Contribuições à Filosofia”, não corresponde ao caráter desse pensar.
Heidegger, desse modo, havia começado desde cedo a criticar sua recepção. No curso “O início (Anfang) do pensamento ocidental”, do verão de 1932, ele anuncia:
“Eu não tenho rótulo algum para minha filosofia, e, de fato, não o tenho justamente porque não possuo nenhuma filosofia própria. No entanto, em meus esforços, trata-se apenas de conquistar e preparar o caminho, de modo que vindouros possam, talvez, recomeçar a partir do oportuno início da filosofia.”
Heidegger não apenas não possuiria “nenhuma filosofia própria”, mas “filosofia alguma em geral”. Ele diz isso cinco anos depois de, com a publicação de “Ser e tempo”, ter-se alçado ao topo não apenas da filosofia alemã e europeia: começou-se a receber Heidegger na América do Sul e no Extremo Oriente.
O fato de um filósofo não representar “filosofia alguma em geral” soa, de início, retórico. Não era Heidegger o célebre professor de filosofia da Universidade de Freiburg, cujo reitor ele deveria se tornar no ano seguinte? Multidões de estudantes não assistiam às suas preleções e aos seus seminários, acompanhando suas palavras? Suas conferências não eram eventos de um imediato interesse público? Heidegger pertencia à instituição da universidade alemã, ao “Establishment”, todavia não são falsas suas palavras quando diz que não representava “filosofia alguma em geral”. Sua indicação, segundo a qual ele trabalharia para “que vindouros possam, talvez, recomeçar a partir do oportuno início da filosofia”, que assim, em geral, poder-se-ia reiniciar com a filosofia, refere-se àquela diferença no pensar da qual se falou, de passagem, no começo deste texto.
Heidegger não foi apenas, no começo dos anos 1930, frequentemente identificado, num só fôlego, junto de Karl Jaspers como “filósofo da existência”. Que Heidegger, no verão de 1932, tenha se referido ao fato de não ter “rótulo algum” para seu pensar pode ser uma reação à publicação em três volumes de “Filosofia”, de Jaspers, no mesmo ano. Por outro lado, já se reconhece de maneira geral que os projetos de Heidegger e Jaspers divergem fortemente. Mas aquele quer mais do que se despojar de um discurso modista. Ele enfatiza que a objetificação da filosofia no texto apresenta um problema. Com ela, origina-se um objeto, uma obra passível de ser apropriada no processo de leitura. Se, no entanto, essa atividade torna-se profissão e a técnica dessa profissão consiste em conectar umas com as outras as leituras de textos, então perde-se aquilo que acontece a cada vez antes e depois da sedimentação do pensamento na obra: o pensar mesmo.
De fato, era isso que Platão queria dizer com sua crítica à escrita no Fedro: “ó engenhosíssimo Theuth. Um sabe trazer à luz aquilo que pertence às artes; um outro, julgar quanto dano e benefício elas trazem àqueles que vão usá-las. E assim tu também, por amor, disseste agora, como pai das letras, o contrário daquilo que elas provocam. Pois, antes, essa invenção infundirá nas almas aprendizes esquecimento a partir da negligência da memória, pois elas, na confiança da escrita, se recordarão apenas por fora, por meio de signos alheios, e não internamente a si mesmas e de modo imediato” (tradução de Schleiermacher, 274e/275a). Dessa forma, Sócrates relata uma história egípcia do encontro entre o deus Theuth e o rei Thamos, sem dúvida um mito venerável para os filósofos gregos. A escrita traz esquecimento (lethe), ela impede o recordar (anamnesis) — e o que é o pensar senão recordar? Não seria, então, o “esquecimento do ser” (Seinsvergessenheit) um tipo de “esquecimento do pensar” (Denk-Vergessenheit), um equívoco do pensar que já precocemente, no início da filosofia, começou a operar?
Surpreende que naquela declaração de Heidegger do verão de 1932 já apareça, en passant, a palavra que ele, posteriormente, empregou de maneira variada para a caracterização de seu pensar: tratar-se-ia, “em meus esforços, apenas de conquistar e preparar o caminho [Weg], de modo que vindouros possam, talvez, recomeçar a partir do oportuno início da filosofia”. Aproximadamente desde a metade dos anos 1950, Heidegger começou a elaborar o campo semântico do “caminho”, do “movimento” (Bewegung), também do “andar” (Gehen) e da “passagem” (Gang). O lema da “Obra Completa”, “Caminhos – não obras”, remete a uma longa ocupação e a um abundante uso dessa oposição.
O que é a “mais íntima movi-mentação do pensar” (innerste Be-wēgnis des Denkens), assim como aludida em “Acenos I” [“Winke I”], do fim dos anos 1950? Heidegger levou bastante a sério os significados de “caminho” até mesmo nos títulos de suas obras (“Caminhos de floresta”, “Marcas do caminho”, “O caminho do campo”, “A caminho da linguagem” etc.). O também marcado graficamente “en-caminhar” (Be-wëgen) abre caminhos do pensar que não são definidos por destinações. Heidegger está consciente da peculiaridade de uma tal concepção de filosofia quando escreve:
“Caminhos – talvez o pior obstáculo para um diálogo frutífero com minhas tentativas de pensar seja a cegueira para algo como caminhos do pensar para o pensar que, como pensar, está a caminho – e construindo caminhos. Não se é capaz de se entregar ao caminho. Quer-se resultados e, de fato, na direção de algum critério qualquer de segurança”.
De fato, o discurso sobre “caminhos”, por esclarecedora que seja sua retomada do significado grego de método, não parece ser livre de problemas. Primeiramente, não se deve ignorar que Heidegger fala de “caminhos”, não simplesmente do “caminho do pensar”, como consta em um conhecido título de livro acadêmico. O pensar somente perfaz uma continuidade na medida em que forma e persegue, sincronicamente, diversos “caminhos”. Esse aspecto do trabalho filosófico concreto sedimentou-se, no caso de Heidegger, no fato de que ele frequentemente trabalhava em diversos manuscritos ao mesmo tempo, que exibiam muitas vezes grandes diferenças estilísticas entre si.
Além disso, a diferenciação entre “caminho” e “resultado”, isto é, destinação (Ziel), faz pairar o pensar em uma peculiar indecisão. Por que, afinal, nós pensamos se não se trata de solucionar determinados problemas do pensar? É justamente isso que o pensar heideggeriano enfatiza reiteradas vezes. Não se trata de resultados, de conhecimentos, mas do “movimento do caminho” (Be-Wegung) mesmo:
Até agora as pessoas negligenciam insistentemente – consciente ou inconscientemente – duas dis-posições em meu caminho:
- o fato de que esse pensar, em toda parte e sempre, se põe à prova (versucht sich) como pro-visório (vor-läufiges);
- o fato de que a autocrítica permanentemente originária está ancorada nessa detida provisoriedade, escreve Heidegger em um dos “Cadernos Negros” tardios. Um pensar “pro-visório” é um tal pensar que se movimenta “adiante” no caminho (das sich “vor” bewegt), que, nesse sentido, pensa-adiante (vor-denkt). Ao mesmo tempo, ele é um pensar sempre revogável, jamais consumado. Esse pensar pode ser assim porque está “ancorado em uma autocrítica permanentemente originária”. Assim, a crítica não sobrevém posteriormente ao pensar, mas forma já seu início. A abertura, da qual Heidegger fala tão frequentemente, não é uma destinação do pensar. Ela é sua realização, sua consumação (Vollzug). E se o pensar é crítico desde o começo, então é abertura. E o que de diferente deveria ser a crítica?
“A mais íntima movi-mentação do pensar” é o movimento pensante do caminho como intimidade intelectual. Esse pensar encontra-se sempre criticamente em distância e diferença em relação a si mesmo e toma sua forma linguística de expressão como campo daquele movimento do caminho. Daí origina-se, aliás, a manifesta incompreensibilidade desse pensar. Ele não cria conceitos estabilizantes, mas opera junto a palavras que experimentam uma transformação no movimento do caminho do pensar. Esse trabalho dentro e junto dos significados, que, por seu turno, manifestam-se como palavras, surge ocasionalmente como uma produção sem sentido de neologismos na qual se perde todo e qualquer objeto do pensar. Todavia esse pensar não possui já de início objeto algum.
Heidegger modificou a máxima husserliana “às coisas mesmas” na medida em que fala da “coisa do pensar” (Sache des Denkens). O genitivo é ambíguo. Ele dá a entender que há uma coisa elaborada pelo pensar e também que essa coisa é o pensar mesmo. Como quer que Heidegger tenha ainda elucidado (erläutert) a coisa, a expressão idiomática parece, porém, constatar um significado que não pode haver no pensar heideggeriano.
Quando se leva a sério o que Heidegger diz sobre o “en-caminhar” (be-wëgen) do pensar, então nem “Ser e tempo” nem as “Contribuições à Filosofia” podem ser obras principais, mas justamente caminhos entre muitos. Porém pela primeira vez, aparece em “Ser e tempo” aquele tropo da “pergunta pelo sentido de ser”. Quanto mais essa pergunta possui, por assim dizer, um significado dogmático, podendo ser ensinada, por exemplo, em contextos acadêmicos, como a “pergunta heideggeriana”, tanto menos tornou-se alguma vez distinto o que ela quer dizer.
De fato, com a indicação da temporalidade do Dasein, insinuou-se em “Ser e tempo” mesmo uma resposta. Mas rapidamente ficou claro que ela era apenas provisória. Certamente o filósofo tentou elucidar a pergunta ao determinar o sentido como a verdade do ser. Nós compreendemos, porém, a “pergunta pelo sentido de ser”? Ele a compreendeu? No caso desse pensar, trata-se de “compreender”? Não foi justamente a obscuridade da pergunta de tal modo produtiva que um pensar pôde operar junto a ela ao longo de décadas? Não se trata apenas de compreender que o pensar é incompreensível, mas de que na questão do ser está implicado algo diferente da compreensibilidade. Assim, escreve Heidegger:
“A questão do ser em Ser e tempo não busca, enquanto questionar [Erfragen] da verdade do ser, uma resposta a uma pergunta, mas busca o responder, próprio e inquestionável, como [um] pertencer [Gehören] à ‘verdade’ enquanto [um pertencer] ao seer do ser.”
O pensar testemunha seu pertencimento (Zugehörigkeit) àquilo que ele deixa pensar. O pertencimento é “inquestionável”, pois é ele que possibilita o pensar. No pensar, trata-se praticamente apenas dessa possibilitação. Em consequência, ela se mostra como “verdade” no sentido daquele jogo de alternância, ligado em mútua pertença (zusammengehörenden Wechselspiels), de ocultação e desocultação. Justamente o oculto (o lethe) – que não pode jamais vir à aparência – libera o pensar. O que já foi compreendido o bloqueia. O que deverá ser compreendido o bloqueará. Somente o incompreensível deixa pensar de modo plenamente desimpedido.
Outro conteúdo doutrinário (Lehrgehalt) desse pensar é a “diferença ontológica” decorrente da “questão do ser” mesma. O “ser mesmo” não seria “nada de ôntico” (“nichts Seiendes”). Por décadas a fio, essa “diferença” foi considerada o eixo central do pensar heideggeriano. A recepção da filosofia heideggeriana gira, não raramente, apenas em torno dela. Posteriormente, porém, Heidegger também critica essa figura do pensar, ainda que a mantenha em aberto:
“Assim, o caminho através da diferença é errôneo e, portanto, vão. Não obstante, o pensamento na diferença como tal tornou-se ocasião para abrir e manter livre a visão do pensar para o completamente diverso – o obscuramente buscado na ‘questão do ser’.”
Pensar o “ser mesmo” como o “completamente diverso” conduz a uma filosofia na qual a “reificação” (“Verdinglichung”) torna-se necessariamente um tema central. Já bem cedo, antes mesmo de “História e consciência de classe”, de Georg Lukács, Heidegger alertava em uma preleção para a “reificação” científica da vida não objetiva (da vida biográfica, não biológica) em sua realização constantemente autorreferente. Como é possível uma ciência necessariamente objetificante da vida quando esta não pode jamais ser objeto? Essa figura do pensar já é familiar dentro do contexto da “teologia negativa”. A “vida”, ou o “ser mesmo”, é – por estar além de toda objetividade, além de todo ente – sem-nome. Todo sentido a distorce, aliena-a de si mesma.
Em sua preleção inaugural de 1929, intitulada “O que é metafísica?”, Heidegger acusou a ciência de não ter nenhuma ideia a respeito do “nada nadificante”. Naturalmente, isso é deveras correto. Uma ciência do nada chegaria rapidamente a seu fim. Na orientação (Ausrichtung) positivista da ciência moderna, uma tal formulação possui quase um caráter cômico, convidando a excessos absurdos (como um pedido de financiamento externo para uma pesquisa sobre o nada, que leva a nada). Para a filosofia vale o oposto. Ela tematiza o nada em sentido eminente.
O pensar heideggeriano movimenta-se no caminho do não-objetivo e encontra, para isso, sempre novas figuras de fala e de escrita. A “coisa do pensar” é, por isso, sem dúvidas, uma a-coisa ou uma não-coisa (Un-oder Nicht-Sache), nada para a qual o pensar poderia apontar ou sobre a qual ele poderia construir. É óbvio ver uma conexão entre a “mais íntima movi-mentação do pensar” e essa não-objetividade de sua “coisa” (Sache). O pensar não chega, por isso, a resultados, uma vez que todo resultado coagula (gerinnt) em objeto. Não voltados a resultados, os caminhos desse pensar são sem destino.
Pode-se perguntar se esse pensar sem objeto gira em torno da apreensão das “condições de possibilidade” próprias ao ente. Essa parece ser, em última instância, uma forma metafísica de pensar, que Heidegger queria justamente contornar. Em “Ser e tempo”, ele deparou-se com uma tal fundamentação transcendental do filosofar, para então criticá-la. Um pensar que está interessado nas “condições de possibilidade” permanece referido a objetos. O pensar heideggeriano destrói tais figuras de fundamentação.
Mas talvez não em toda parte. Eu, porém, votaria a favor de que nos momentos em que Heidegger chega, por exemplo, a massivos comentários crítico-culturais, ele fica aquém de sua própria reivindicação de pensar o “ser mesmo” não-objetivo (qualquer que seja o significado, como o de “acontecimento apropriador” [Ereignisses]). Pois o modo como o “ser mesmo” (ou o “acontecimento apropriador”) se manifesta em formas específicas de cultura é uma questão que permanece dependente daquela figura de pensar transcendental que Heidegger rejeita. O “ser mesmo” não pode fundamentar cultura alguma ou a sua condição.
O pensar heideggeriano é sem resultado e sem objeto. Isso não significa que ele não discuta tema algum. Os temas tardios da “com-posição” (Ge-Stells) e da “quaternidade” (Ge-Vierts) colocam demandas a esse pensar ao longo de décadas. A “mais íntima movi-mentação do pensar” evita e rejeita, contudo, uma dogmatização de eventuais resultados dessas tematizações. Quem quer encontrar doutrinas em Heidegger ignora a ausência de destino e objeto desse pensar. A única doutrina que, possivelmente, exista nele seria aquela segundo a qual não há e não pode haver doutrina alguma.
Há ainda uma objeção que se coloca aqui de modo evidente. O objeto do presente texto são as considerações de Heidegger a respeito de um pensar sem destino e sem objeto. Mas afinal de contas Heidegger lhes deu forma escrita, deixando, assim, um rastro objetivo. Se tivesse “apenas” pensado e, como Sócrates, evitado a escrita – não tendo havido, além disso, Platão algum para ele – nesse caso, então, o pensar seria verdadeiramente sem objeto e sem destino. Mas enquanto ele se expressa, permanece objetivo.
Heidegger se ocupou da escrita e do significado dela para seu pensar, sobretudo nos “Cadernos Negros”, tendo designado a “escrita do dito poetizante (dichtenden Sage) do ‘seer’” como o “ofício (Handwerk) do pensar”. Essa escrita é, para Heidegger, a “escrita manual” (Handschrift); um pensamento que, sem dúvida, liga-se ao fato de que Heidegger redigia à mão tudo aquilo que escrevia. Ele jamais utilizou uma máquina de escrever.
Não quero me envolver na discussão sobre as propriedades e eventuais vantagens da escrita manual – evidentemente, para além da grafologia –, ou sobre as propriedades técnicas da escrita maquinal. O mais importante é que Heidegger acrescenta: “Quando ela auxilia na transcrição (Nachschrift) do seer para o interior da linguagem”. Na medida em que a escrita manual é “transcrição do seer”, Heidegger retira dela a autossuficiência. O filósofo que escreve corresponde a uma outra escrita: “Toda escrita genuína é transcrição. Ela não apenas transcreve, copiando (abschreiben), uma outra escrita, mas ela diz na medida em que corresponde à coisa”. E, então, prossegue:
“Talvez seja bastante rara a escrita essencial; não porque o ser humano raramente a desempenha, mas porque a trans-crição como dito do seer permanece poupada [gespart] no seer mesmo.”
A coisa à qual corresponde a escrita do pensar é o seer mesmo. Nele permaneceria “poupada a trans-crição como dito do seer”. A “trans-crição” não é apenas nenhuma transcrição copiadora (Abschrift). Ela, além disso, tampouco é exaustiva, no sentido que o seer mesmo pudesse vir a se tornar escrita. O seer mesmo é inesgotável em seu sentido, em seus significados. Uma pista nessa direção é o fato de Heidegger ter podido apresentá-lo em formas gráficas tão diversas.
Disso teve origem, para Heidegger, um completo campo-de-escrita (SchriftFeld), sobre o qual seu pensar pode “en-caminhar”(-se) em todas as direções. Em todos os movimentos quer dizer que Heidegger nunca desdobrou seu pensar, na forma escrita, em apenas uma direção. Por vezes, ele também trabalhava em diversos manuscritos ao mesmo tempo; esse trabalhar que, de fato, mais tinha a ver com a configuração de um campo do que com a configuração de uma obra.
A ausência de objeto e de destinação do pensar responde à inesgotabilidade de significados no seer mesmo. O pensar “en-caminha”-se nele na medida em que “trans-creve” sua inesgotabilidade. Esse “en-caminhar” é tão aberto que Heidegger chega mesmo a contestar a influência reguladora do elemento gramatical na escrita. A sua exigência da abertura do pensar e do escrever não se deixa mesmo limitar pela gramática, esta que é, para ele, regulação romana da linguagem. As peculiaridades da linguagem heideggeriana, frequentemente escarnecidas, originam-se de uma decisão consciente contra esse conjunto de regras.
Se o seer mesmo poupa em si todas as escritas possíveis, então toda e qualquer escrita objetiva não é nada mais que “pro-visória”. Compreendê-la como um significado definitivo do poupado (des Gesparten) seria um erro brutal, uma alegação injustificável. E uma vez que o pensar sobre a escrita, sem objeto e sem destinação, abandona-se à inesgotabilidade dela, ele tende à “hyperbolé”. Em seu idioma, Heidegger certa vez escreveu:
“Escreve o dito do pensar seu pensamento para os leitores? Ou a sua transcrição é inicialmente o inscrito (Inschrift) do seer?, como o qual ele [o pensar] se inscreve no próprio esquecimento da usança (Brauch)? O inscrito mesmo essenciaria (weste), então, como o acontecimento desapropriador (Enteignis) na di-ferença (Unter-schied).”
O escrito filosófico não se endereça a leitores, mas sobretudo ao seer mesmo, cuja transcrição inicial seria o “inscrito do seer”. O inscrito, porém, não se inscreve em algum discurso público, mas “no próprio esquecimento da usança”, ou seja, no ocultamento do “acontecimento apropriador”, no “acontecimento desapropriador na di-ferença”. Esse extremo exagero do pensar sem objeto e sem destinação como inscrito do seer para além de todo leitor é um daqueles gestos da filosofia heideggeriana que, aparentemente por ele despercebidos, transformava-se em um dogmatismo; no dogmatismo do único pensador vivo, que sabe a respeito do inscrito do seer – Heidegger, o pseudoprofeta. E no entanto se deve realçar justamente para os surtos hiperbólicos desse pensar que eles não contradizem o caráter do “en-caminhar”. Também a hyperbolé é um caminho. Heidegger conscientemente a escolhe, novamente abandonando-a.
Da “pergunta pelo sentido de ser” originaram-se o “acontecimento apropriador”, o “seer mesmo”, o “seer”, entre outros. Eles desdobram o espaço e o tempo nos quais o pensar sem objeto e sem destinação pode (se) “en-caminhar”, nos quais ele pode revelar-se retórico e antirretórico, destrutivo e dogmático, poético e antipoético, exotérico e esotérico, científico e anticientífico, metapolítico e apolítico, cristão e anticristão, ético e antiético, bem como filosófico e antifilosófico. O filosofar de Heidegger busca praticar essa abertura do pensar e, praticando, deixar que ela se torne mais nítida.
De volta ao início. A história da filosofia é uma história das objetificações de significado. Ela se manifesta em textos que se tornam obras e que abastecem discursos com argumentos. Daí decorre uma forma institucional da filosofia e do filosofar que se perpetua também em sua popularização. Se a obra serve, no curso acadêmico, como objeto de estudo e pesquisa, serve igualmente como mercadoria na popularização da filosofia. Tudo isso dá à filosofia uma plataforma material à qual o pensar pode se referir na medida em que, ele mesmo, nela trabalha.
Essa tendência da filosofia ao objeto sedimenta-se não apenas na reflexão, no ensino e na reconstrução de suas histórias de texto, mas para além disso, na conexão do filosofar com discursos sociais e políticos vigentes, como o avanço da pesquisa sobre inteligência artificial e sobre o cérebro, o racismo, a teoria de gênero ou o coronavírus etc. Aqui, então, a filosofia torna-se um comentário auto-objetificante acerca de objetos, comentário que, por sua vez, objetifica sua própria história em textos. O mais massivo objeto de uma tal filosofia parece ser, aliás, a sociedade, na qual debates despontam e fenecem.
Seria demasiado simples interpretar essa materialização da filosofia como fenômeno de decadência ou como fraqueza narcisista. A ânsia por presença e permanência possui causas mais profundas que a economia do narcisismo, economia que é, todavia, o espaço de ressonância delas, das causas. Heidegger tentou decifrar isso em suas interpretações da época do filosofar por ele designada como metafísica. Mas apesar de seus indícios na direção da “com-posição”, continua a persistir a pergunta pela primazia de determinada concepção da realidade efetiva (realidade) (Wirklichkeit [Realität]) e de suas condições. Por que a filosofia se integra dessa forma mais ou menos irrefletida às estruturas vigentes?
O fato de que a tudo isso anteceda a um acontecimento apropriador não-objetivo – o pensar – é algo conhecido por todos e todas – e no entanto pouca consideração é filosoficamente devotada a ele como tal. Certamente Platão ou Hegel pensaram antes e enquanto produziam seus textos, mas isso não parece, como uma banalidade, desempenhar papel algum. Porém isso é efetivamente apenas uma banalidade? Nesse ponto tem início a compreensão de Heidegger do pensar. Ele busca enfatizar precisamente esse evento que repousa antes de toda objetificação na medida em que tenta – tão longe quanto possível – separá-lo dela.
Com isso, põe-se em causa uma forma de filosofia determinada e muito impactante. Toda e qualquer sedimentação do pensar em obras e discursos prova ser uma distorção e um desmonte da abertura. Um filosofar que se apresenta em resultados de processos de conhecimento sujeitou-se às necessidades da institucionalização e da economia. Ali onde se deveria ensinar aos estudantes e às estudantes a pensar, ensina-se a eles conhecimentos aparentemente fixos, extraídos da história da filosofia. Mesmo onde as coisas são arranjadas de forma a que ambos coadunem, o pensar mesmo não é tematizado mais amplamente.
Em contrapartida, a radicalidade com a qual Heidegger rejeita toda objetificação do pensar, bem como toda conexão com instituições e domínios públicos vigentes (pelo menos no pensar dos “Cadernos Negros” e daqueles “tratados onto-históricos” não publicados em seu tempo), deve permanecer sendo aquilo que ela descrevia frequentemente a respeito de si mesma, a saber, [deve permanecer] “singular” (einzigartig). A decisão de deixar em confiança, desse modo, o pensar ao “en-caminhar” sem objeto e sem destinação é demasiadamente individual para que pudesse ser acolhida de imediato. Além disso, uma tal mimese contrariaria a própria motivação da decisão de Heidegger: seu caráter antidogmático se tornaria dogma.
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E não obstante o pensar de Heidegger coloca o dedo na ferida. A concepção de que na filosofia tratar-se-ia especialmente de obras a serem ensinadas e estudadas prepara o terreno da institucionalização e da economização ou popularização da filosofia. Estas, por seu turno, fomentam aquela concepção, de modo que o mais íntimo da filosofia, o “pensar mesmo”, cai cada vez mais no esquecimento. Isso terá impacto, finalmente, sobre suas objetificações na própria obra. Entrementes as obras mesmas parecem ser não mais que uma reminiscência daquilo que foram outrora. A filosofia tornou-se uma “sombra numa caverna”.