Sob um certo ponto de vista, sim, estamos todos interligados — é o que o budismo chama de interdependência: viemos da mesma fonte e tudo que eu faço afeta você, uma pessoa lá na China, por exemplo, e o todo.
Por outro lado, o pensamento de que somos todos um pode trazer um grande problema: a relativização do sofrimento. Aqui vão algumas formas de como isso se mostra:
Spiritual bypassing
A expressão spiritual bypassing é traduzida por alguns como “passar pano espiritual”. Essa expressão foi cunhada pelo professor budista John Welwood e refere-se à “tendência a usar ideas e práticas espirituais para se esquivar ou evitar encarar problemas emocionais não resolvidos, feridas psicológicas e tarefas não concluídas”.
Trazendo para o nosso assunto, usar a espiritualidade para deixar de encarar aquilo que não está resolvido em nós: nossa própria intolerância, racismo, homofobia ou seja lá o que nos faça entender “diferentes” do outro. Quando dizemos: “somos todos um”, vamos pelo caminho mais fácil: se somos iguais, não preciso olhar para o outro. E nem para dentro de mim.
Não ver o problema
Quando você acha que somos todos iguais, não vê que as desigualdades existem, e elas são muitas!
O pessoal d´Olugar deu um exemplo muito interessante, referindo-se à pandemia, mas que é uma boa metáfora para a vida: “Não estamos todos no mesmo barco. Estamos, no máximo, no mesmo mar — alguns de canoa, outros de iate, uns com o barco cheio de comida, outros nadando com fome”.
A pessoa cujos pais estudaram e que vai para a faculdade de carro não pode ser comparada ao garoto que usa a luz do poste da rua para estudar. A pessoa que sai para trabalhar e deixa seus filhos com a empregada não pode ser comparada à mãe que dorme no trabalho e quase não está presente para dar amor e educar os seus.
Se eu consegui, você também consegue
Relativizar o sofrimento alheio porque você também já sofreu ou porque você também teve que lutar pelo que teve leva a injustiças, e pior: leva à não correção daquelas que já aconteceram e que ainda afetam, no presente, várias classes de pessoas.
É deste tipo de pensamento que surgem pessoas contra medidas reparadores, como as cotas. As cotas representam uma reparação de uma injustiça histórica. Se você acha que todos deviam ter o mesmo tratamento, vai se colocar contra o levantamento de bandeiras de esclarecimento e correção como essa.
Julgamento
Achar que é só a pessoa se esforçar mais, estudar mais, se espiritualizar mais, pensar mais positivamente e trabalhar mais duramente não é você sendo mais iluminado — é o seu ego ganhando força e fazendo o que ele mais gosta: julgar os outros.
A mesma coisa sobre relativizar a dor alheia: achar que é mimimi, que não foi tão mal assim, que era só uma brincadeira, que não precisa militar ou levantar bandeira. Lembre-se: “Mimimi é a dor que não dói na gente.”
Não se ver como parte do problema
Aquela pessoa racista ou homofóbica extremista e que aponta armas para as pessoas na rua, que ataca homossexuais é a exceção. A intolerância de cada dia vem de pessoas que não se entendem como parte do problema. A pessoa que pergunta: “Você trabalha aqui?” para uma cliente negra numa loja, o homem que continua fazendo piadinha com mulher e com gays, a pessoa que faz blackface em pleno 2021.
Enquanto não entender que todos nós contribuímos para a intolerância no mundo de alguma forma, não vou fazer nada para mudar isto, afinal não é culpa minha.
Não se ver como parte da solução
Depois de se entender como parte do problema, o próximo passo é ter a consciência do que você pode fazer para ajudar. Isso passa por se informar, apoiar medidas corretivas, cuidar da sua linguagem no trato com os outros, apoiar o trabalho das minorias, fazer contribuições de tempo, de energia, de dinheiro, de escuta e do que mais você puder para diminuir as diferenças.
Não adianta esperar que o outro (o governo, as associações, os oprimidos) faça algo: enxergue-se como parte da solução. Pergunte o que você pode fazer.
Você também pode gostar
Nossa maior tarefa, no entanto, é desenvolver compaixão. Compaixão é o desejo de que todos os seres fiquem livres do sofrimento e das causas do sofrimento. É isso que vai fazer com que você se enxergue e se mova em busca da igualdade de todos os seres.