Autoconhecimento Comportamento Convivendo

Quando se veste o Avatar

Imagem de um chão feito de ladrilho cinza, com duas setas brancas pintadas no chão. Elas direcionam para a esquerda ou para a direita, trazendo o conceito de ideologia política. Em destaque, os pés de uma pessoa usando um tênis, sem saber qual lado seguir.
Andrei Sauko / Getty Images / Canva

Ao analisar a volatilidade das ideologias políticas, nota-se que o “certo” e o “errado” mudam com o tempo e contexto. É preciso empatia para entender lados opostos e entender que mudanças de pensamento refletem ajustes externos e não instabilidade interna.

Ao analisarmos mais detidamente o pensamento dos defensores das duas grandes ideologias – a direita e a esquerda –, o que se apreende na comparação é que a nenhuma delas se pode conferir o título de “lado certo” para defini-la de forma absoluta, pois que sua dinâmica ao longo da história é claramente volátil ao observarmos que trocam constantemente de posição em relação às sociedades onde se instalam.

Uma forma de constatá-lo é destacando bem o momento da análise, prestando atenção em como os dois lados àquele momento histórico específico. Ao levarmos o momento e o local geográfico para tempos passados, fica fácil perceber como as posições se alternam, e o que se tem como o posicionamento mais acertado agora pode ter sido o pior que se adotou no passado.

Por uma ótica não tendenciosa e estritamente histórica, fica difícil não perceber essas alternâncias entre o “lado certo” e o “lado errado” das nossas escolhas entre lados “distintos”, deixando claro que os pensamentos predominantes à época da análise é que fazem a distinção pela lógica vigente, e não pela configuração técnica dessas ideologias. E isso se aplica não só aos indivíduos, mas ao contexto sistêmico de um país.

Veja-se que, pela ótica individual, D. Pedro II e Getúlio Vargas, por exemplo, são respeitados como figuras progressistas e preocupadas em deixar um legado de avanços sociais significativos aos seus contemporâneos. Mas o contexto em que atuaram, comparado ao que entendemos hoje como “democracia”, não era visto assim em seu tempo: um era o monarca de um regime absolutista, e outro governava em um estado ditatorial que não admitia o contraditório, daí ter gerado o levante que o levou ao suicídio.

O melhor exercício intelectual que já fiz para avaliar esse fenômeno do entendimento entre “certo e errado”, aplicável a duas correntes ideológicas destes tempos (como a direita e a esquerda), foi quando mergulhei nos depoimentos e afirmativas de uma das partes. Esse “mergulho” se traduziu por imaginá-los no grupo de seus opositores, em um momento anterior da história, e então…

Vi-me tomado pela certeza de que se comportavam exatamente da mesma forma quanto às “injustiças e perseguições” de que se queixavam ali, na tentativa de esvaziar seus sentimentos de revolta e desalento em relação ao momento que atravessavam. Mas para esse exercício funcionar, é indispensável que pensemos com a cabeça do militante, e não com a de quem observa o fenômeno pelo viés analítico do observador, em termos de vivenciarmos o que aquelas pessoas estão sentindo.

Em contrapartida, a experiência se mostrará impraticável para aquele ativista obstinado de um dos lados, por exemplo, já que irá rejeitar com todas as suas forças pensar com a cabeça de seus oponentes, ainda que só para efeito de teste.

Mas se considerarmos apenas o viés político nessa análise, seria correto afirmar que a solução, portanto, seria integrar o grupo dos que se colocam ao centro? Se o visualizarmos mentalmente, numa régua entre 0 e 100, poderíamos afirmar que no marco 50 encontraríamos a representação daquele “certo” que se espera de uma governança equilibrada e benéfica para seus cidadãos?

Em termos políticos, a resposta é não, pois existem muitas variáveis para os que se definem como “de centro”, o que o torna esse “certo” bastante questionável. Em termos conceituais, porém, com certeza que, quanto mais distanciados estivermos do ponto 0 ou do 100, mais próximos estaremos do ideal, por conta da não proximidade entre os dois extremos.

Imagem de uma mulher olhando pela janela de um trem. A imagem traz o conceito de passado, de olhar para o passado e refletir.
StockSnap / Pixabay / Canva

Quando olho para meu próprio passado, percebo mudanças significativas de pensar, em vários momentos. Essa constatação costuma assustar a maioria, numa análise ainda rasa de sermos instáveis ou imaturos em nossa ancoragem mental, principalmente quando nos preocupamos com a coerência e honestidade em relação às nossas escolhas. Isso porque reconhecer e aceitar mudanças, principalmente se vêm a público, é visto como um ato heroico reservado a poucos.

A maioria de nós tem vergonha de reconhecer a mudança ocorrida por dentro, a ponto de negá-la se confrontado por outros, ou frequentemente até para si, pelo medo de encarar as próprias verdades. No meu caso específico, a primeira experiência de admiti-lo veio como algo muito positivo, ao entender tardiamente que esse “errado” se aplicava apenas à “periferia” de mim, não à minha essência. Esta última, como acabei descobrindo, é passível apenas de avanços, não de retrocessos.

Em termos práticos, descobri que as mudanças aconteciam era do lado de fora, no contexto onde eu me inseria naquele momento, o que me colocava automaticamente em rota de colisão com ele, já que minha essência – o meu conjunto de princípios e valores – permanecia inalterável. E, como ela não retroage, o choque dessa nova realidade com minha estrutura nuclear me passava a impressão de que a instabilidade era minha, e não do que estava à minha volta.

Entendi, a partir desse momento, que aquela aparente contradição com meu histórico de vida advinha da fidelidade à minha própria essência, e não pela incapacidade de manter minhas convicções. Lembro que na ocasião quis marcar a descoberta com uma frase onde afirmava não mais hesitar em mudar, “sempre que a verdade mudasse de lado”. Sabe aquela sensação de quando estamos num trem parado e olhando pela janela, achamos que ele começou a andar, até percebermos que quem se moveu foi a outra composição em sentido contrário? Exatamente assim!

Nesse aspecto também tentei uma experiência “imersiva”, me colocando o mais possível dentro do pensamento das pessoas que naquele dia encontrei apoiando um conhecido jornalista da direita. O resultado foi impactante: quando mais fundo se mergulha na cabeça deles, mais as emoções afloram no sentido de empatia em relação àquele lado, e de injustiça em relação ao outro. Mas basta inverter as posições, e o mesmo acontecerá, mas agora pela visão do outro lado.

A impressão é a daquele avatar em que instalamos nossa mente: você troca seu mundo real pela perspectiva dele, e o efeito é inacreditável. Aí entendemos porque todas as “verdades” que enxergamos tão claras, e porque todas as provas físicas que nos parecem tão absurdamente incontestáveis, sequer arranham as crenças daquelas pessoas de que estão lhes retirando todos os direitos, todas as liberdades, e sendo vítimas de uma sórdida campanha para desacreditar seus líderes e suas convicções de que sempre estiveram do lado certo da história. E é quando o entendimento da “disfunção cognitiva”, que ouvimos repetidas vezes, é questionada lá em nosso íntimo, após mergulharmos no mundo do avatar que personificamos.

Imagem de duas cabeças, sendo uma de um avatar e outra feita de fios dourados.
kentoh / Getty Images / Canva

Tudo fica incrivelmente compreensível, todos os discursos se revelam lógicos ao lhes sentir o cérebro como sendo meu… Pois uma coisa é a ótica de quem está olhando o seu corpo ali inerte naquela câmara física, e outra é a sua mente naquele momento, transportada em pensamento para o mundo do seu avatar. Se você não esteve preocupado em se amarrar antes de mergulhar nele, atirando-se sem medo do que iria encontrar, talvez se assuste ao descobrir como aquele mundo lhe parecerá tão real e crível quanto o que você habitava até antes daquele mergulho!

E dê-se a isso o nome que quisermos: experiência sensorial, empatia humana, vivência espiritual, o que for, conforme sua vocação para o concreto ou para o metafísico, isso não importa… O fato mesmo é que, ao vivermos integralmente uma experiência que nos coloca dentro do outro, como passamos a nos entender, passamos por uma ressignificação profunda e impactante, fazendo-nos sair do micro para o macro, do singular para o plural, do particular para o sistêmico… Ocorre-nos então que tudo pode não se ter tratado apenas de uma mera experiência – que é episódica – mas de uma transmutação de essência, algo que você ainda não sabe definir, mas que transcende a conceitos que você tinha antes como “inalteráveis”.

E se você não o conseguir alcançar, a mim pelo menos me parece compreensível: integra aquelas coisas que os arautos da fé afirmam só conseguir entender quem a vive. Se verdadeiros ou não os tais “milagres da fé”, nossa visão externa deles não fará a menor diferença! O importante para o crente é que ele se abre para suas crenças da mesma maneira que a mente lógica se abre para algumas descobertas que transcendem a maneira convencional de se pensar as verdades, sejam elas quais forem.

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Tá… Houve um tempo – a maioria dele, para ser exato – em que eu acreditava que poderia me manter fora das caixas, sem jamais as conhecer por dentro. Mudei também esse conceito. Agora, por exemplo, estou claramente vivenciando uma, ao perceber que quem está dentro dela defende os mesmos valores que eu.

Nossas convicções acabam sempre tomando uma forma de caixa, não tem jeito, e sempre fui homem de convicções fortes. Mas as convicções são duradouras, e as caixas nem sempre. Então, permanecerei na que estou até que “me expulsem”, se perceber meus parceiros se perdendo na caixinha em que nos encontramos agora. Há um quesito em que me mostro imutável: estou sempre vigiando se não colocam cadeados na porta!

Sobre o autor

Luiz Roberto Bodstein

Formado pela Universidade Federal Fluminense e pós-graduado em docência do ensino superior pela Universidade Cândido Mendes. Ocupou vários cargos executivos em empresas como Trimens Consultores, Boehringer do Brasil e Estaleiro Verolme. Consultor pelo Sebrae Nacional para planejamento estratégico e docente da Fundação Getúlio Vargas e do Instituto Brasileiro da Qualidade Nuclear (IBQN) para Sistemas de Gestão. Especializou-se em qualidade na educação (Penn State University, EUA) e desenvolvimento gerencial (London Human Resources Institute, Inglaterra). Atualmente é diretor da Ad Modum Soluções Corporativas, tendo publicado mais de 20 livros e desenvolvido inúmeros cursos organizacionais em suas diferentes áreas de atuação. Conferencista convidado por várias instituições de ensino superior, teve vários de seus artigos publicados em revistas especializadas e jornais de grande circulação, como “O Globo”, “Diário do Comércio” e “Jornal do Brasil”.

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