Convivendo

Saudade tem tradução

Silhueta de mulher andando em aeroporto, puxando uma mala de rodinhas com uma bolsa apoiada em cima, enquanto fala no celular. Ela está em frente a um vidro onde é possível ver um avião e a pista de pouso e decolagem.
Escrito por Marisa Pretti

Eu pensei que ia morrer. Sinceramente, e sem intenção de drama, eu pensei, ou mais precisamente: tinha certeza que ia morrer.
Tempo teve para aceitar, a partida da filha que há anos sonhava em morar fora do nosso Brasil.
Mas, sabe como é: quando não queremos acreditar em alguma coisa, criamos estratégias covardes para não enxergar o fato.
E no ato, eu senti que ia morrer.

Mulher chorando com as mãos na frente do rosto, de frente para uma janela molhada de chuva.

Quando a última chamada para o voo AC 091 Da Air Canadá anunciou a realidade, do embarque imediato, aí sim, eu entendi que o futuro era o agora. E sofri, com o sentimento antecipado da saudade que insistia em se antepor ao orgulho, de sentir a filha exalar nas palavras, o hálito, o bom perfume dos determinados.
Meu coração acelerou, ainda mais que os pensamentos maternos desmedidos em preocupação.

Imediatamente me transportei para um passado não tão remoto, onde a ideia era ainda um sonho. E na sequência, um oco pulsante instalou-se no meu cérebro.
E na mesma velocidade, minha respiração disparou um baticum dum arrítmico. E encolheu meu coração. Espremeu. Sabe uma uva passa? Todo meu corpo se contraiu. E tremeu.
E sinceramente pensei: que ridículo, vou morrer aqui, no aeroporto de Guarulhos! Vou enfartar ter um AVC. Talvez seja um bom dia para morrer – como sou egoísta – eu pensei.

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Todos que lá estavam despediram-se, ou eu me despedi antes de todos, não lembro bem. Quadro em aquarela lembra seu rosto e apenas ele, olhos brilhantes diretos nos meus olhos, os nossos, dissolvidos em água: “Mãe, obrigada por me deixar partir”.
Ah, filha minha, como não deixar partir? Que direito tenho eu?
Pensei: você partiu quando saiu de mim. Só eu não percebi.
Minhas 3 bonecas, minhas 3 meninas, nunca foram minhas.

Os amigos e parentes, quase todos, me mostravam o lado bacana dessa oportunidade, validavam a tristeza, mas não entendiam que meu coração só sabia diminuir.
Burra não sou das oportunidades eu sei bem.E foi então, que Carla, a amiga médica, corintiana inquieta que me chama de porquinha, deu o tranco amoroso necessário: “Vou receitar florais e homeopatia, se em 4 meses esse luto não passar, vamos entrar com um antidepressivo”.

Todo dia era dia de choro. Choro com engasgo, com nariz escorrendo, com lágrimas a descer pelo decote adentro e a dor – angústia – no peito que não dava trégua.
Quando a saudade apertava, eu pensava nos pais, amigos meus, que perderam os filhos para a morte. Essa sim era real! Então, me sentia pior ainda.
Passaram-se os dias, tão devagar. Meses, até completar os quatro limites.

Imergi no trabalho e na vida pessoal. Adquiri novos hábitos. Fiquei mais preguiçosa, menos perfeccionista, não me impus desafios desnecessários, aceitei minha dor sem minimizar o motivo e aprendi a rir do que nem graça tem. Desfoquei da saudade e também do tempo do reencontro. E a saudade assim como o tempo, foi ficando mais frouxa.

Era domingo 14 de abril de 2019, quando pensei que ia morrer de saudade. Hoje, 14 de janeiro de 2020, dia em que escrevo sobre saudade, engraçado, só agora me dei conta: fecha-se o ciclo de uma gestação. E quem renasce agora sou eu. Mais confiante, conhecedora, de uma mulher menos esquiva para os acontecimentos inevitáveis. Saudade, sensação profunda de falta e distanciamento. Bem descreve uma mistura de sentimentos – incluindo o de perda – mas principalmente o de amor.

Mulher de costas, puxando mala de rodinhas, em corredor que liga o portão de embarque à aeronave.

E num copia e cola transcrevo da Wikipédia uma valiosa informação do mito secular: segundo o qual a palavra ‘saudade’ só existe na língua portuguesa, não tem vocábulos equivalentes em outras línguas e não tem tradução. Não é verdade. A teoria ganhou renovada popularidade quando a empresa britânica Today Translations promoveu uma listagem das palavras mais difíceis de traduzir adequadamente, com as opiniões de mil tradutores profissionais. Saudade ficou em sétimo lugar.
Segundo Carolina Michaëlis isso acontece por ser uma palavra corrente, indissociável da cultura portuguesa e com um significado complexo.
Tão complexo como é a saudade sentida, aqui, lá no Canadá ou qualquer lugar do mundo, é sempre a mesma coisa.
Ah, e a gente sobrevive a ela, sim.

Sobre o autor

Marisa Pretti

Amigo leitor...

Caro leitor...

Querido leitor...

Prefiro chamar você de Passageiro leitor.

Afinal, você está aqui de passagem como eu. Caminhando nesta Terra cheia de buracos e tanta água que haja braços fortes e pernas ligeiras para não se afogar.

Viver, a começar pelo ato de nascer, é para quem tem pacto fechado com a teimosia. O ar inflando os pulmões e o primeiro choro para que ninguém se engane: não estamos aqui só para sorrir, mas principalmente. Sim!

Sou mãe por vocação. Atriz por formação. Entusiasta por opção. Audiodescritora por paixão e profissão desde 2010.

Minha profissão, em uma breve descrição, se resume em traduzir imagens em palavras com o maior detalhamento possível para a pessoa com deficiência visual. Um recurso acessível também para idosos, disléxicos, pessoas com deficiência intelectual e para quem mais sentir necessidade dessa ferramenta assistiva. Simples e complicado assim. Trabalho com filmes, espetáculos de dança, teatro, vídeos, suportes empresariais, e o maior desafio foi levar acessibilidade visual ao Carnaval paulistano, desde 2017.

O mundo é visual, estímulos visuais são constantes! Por meio da audiodescrição qualquer produto pode ser traduzido em palavras.

Trabalhar com inclusão é estar atento ao outro, é ser um facilitador e igualar oportunidades.

Provavelmente foi esse gosto pelas letras encadeadas, mastigadas e saboreadas na língua como um demorado beijo que me trouxe até aqui.

Pretendo contribuir com minhas vivências e reflexões sem pretensão alguma, apenas para compartilhar alguns saberes. Uma leitura leve, um livre pensar, mas nem por isso descompromissado com a sua inteligência.

E porque creio na humanidade, na diversidade e na inclusão aceitei colaborar com o #EuSemFronteiras.

Abraços acessíveis!

OBRIGADA.

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