Indo na contramão das perspectivas. Batendo de frente com as crenças, trejeitos e memórias. Com as histórias criadas, com os pretextos romantizados e com toda a teoria estudada por séculos sobre nós mesmos. Como que desrespeitando os limites, criando novos muros para esconder os antigos, pichando as vidas que se foram, a fim de dar novo sentido às vivências que ficaram.
A cada velha lembrança, novas leituras, hábitos e frustrações. Sorrisos que desconheciam o sentido de ser, horas que não perguntaram se podiam discernir as próprias decisões. Ao fim, simples brechas de coisas que foram acontecendo e que, por algum motivo, ensaiaram a vontade do não. A ânsia pelo que não foi enquadrado.
Na maior parte das vezes, sou a falta de roteiro, o sem contexto, a improvisação.
À medida que nego a ausência, reafirmo o quanto estou nela e ela em mim. De algum modo, somos íntimos do que nos falta, procurando no vazio a consciência de não ser. A ansiedade primeira de colocar-se às ordens da arrogância do que se nega. Da prepotência de gerar, no que não existe, a essência do que se é. Nesse trâmite descontextualizado sobre as inferências que procuramos denegrir, provamos exatamente o quanto de nada temos. O quanto do tudo que se opõe faz parte da associação primeira quando encontramos, mesmo que ilusoriamente, algumas certezas dentre tantas perguntas mal formuladas. O ensaio deveria ser outro.
Rebato, para fortificar os laços, as permanências sujas que reificam minhas predileções. Que protagonizam os dias com quem reitera, na sujeição do acaso, as cortinas desnecessárias à própria apresentação. O ócio cristalizado da exigência sobre fazer alguma coisa. Somos, portanto, nunca e sempre, o despropósito inaugural dos próprios dias. As confusões enraizadas do que se quer esquecer simplesmente para não ter que lembrar. Negando, tropeçando nas memórias latentes de sobrevida, de mansidão, de bagunça.
Nossas certezas escorrem pela parede como chuva em dia frio. Demoram a secar, ficam durante vidas fazendo da louça escorregadia, do chão um perigo imanente de manter-se em pé. Ao primeiro sol da primavera, festejamos a vinda da diferença. Do que não se tem. Nada é pelo motivo de ser, mas pelo de não ser. A insatisfação é uma reclusão do não visto e, por isso, sempre desejado. O frio dando boas-vindas ao calor. A neve utilizando da água apenas para iludir a própria existência. Existência sem cor. Um tumulto admirado de deixar de ser para continuar sendo.
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No final, posterizando na alma o requinte de não ser permanência quando se fica, soluciono minhas lamúrias ao selecionar novos motivos. Amando novas formas, mas mantendo sutilmente os conteúdos. Na diferença, romantizamos um padrão que não se reconhece, que se desqualifica. A arte é, antes de qualquer coisa, um insulto. Os moldes, redomas que subjugam qualquer início. Admitir, pois, ser a resultante legítima do que não se é talvez seja o principal desafio de querer ser o não quando se acredita ser o sim.