“Depois de haver arrasado com o meu palácio, não me venha construir uma choupana pensando estar sendo caridosa.” Esses dizeres foram colocados na boca do personagem Heathcliff por Emily Brontë (1818-1848), em sua obra “O Morro dos Ventos Uivantes” (Wuthering Heights), de 1847.
Fora do seu contexto original, esses dizeres podem ser acrescentados a uma série de situações, o que não torna surpreendente que vez ou outra eles surjam nas redes sociais como mais uma frase de efeito. E é nesse sentido que, enquanto eu considerava redigir este texto, decidi-me por pensar as palavras do controverso Heathcliff em dois contextos distintos.
Em um contexto macro, vale lembrar as palavras do padre Fábio de Melo quando da divulgação de que uma grande empresa de mineração indenizaria em R$ 100 mil as famílias dos cidadãos mortos em tragédia ambiental na cidade de Brumadinho (MG), em janeiro de 2019.
“Um bandido entra na sua casa, rouba tudo o que você tem, mata pessoas da sua família, destrói o seu espaço emocional, memórias, depois ele volta e diz que vai deixar um dinheirinho para você recomeçar a vida. Que bandido caridoso!”
Os dizeres daquele personagem, bem como a bem-vinda ironia do famoso sacerdote diante de uma tragédia que, lamentavelmente, passa ao largo da ficção, podem ser ainda aplicados a um contexto micro.
Tragédias menores, mas nem por isso menos destruidoras. Tragédias essas que, matando-nos em doses homeopáticas, se fazem presentes em nosso cotidiano, mesmo que de forma despercebida.
É aquele pai que enche o filho de presentes diante da impossibilidade (ou falta de vontade) de lhe oferecer a atenção necessária à sua formação como ser humano. É aquele chefe desonesto que passa a tratá-lo com voz mansa e a lhe oferecer regalias diante da possibilidade de sofrer um processo por assédio moral. É aquele conhecido que – depois de ofendê-lo, diminuí-lo e menosprezar as suas questões, reduzindo-o a bem menos que um ser humano – lhe envia mensagens “bonitinhas” pensando estar, dessa forma, reparando todo o mal que lhe foi causado.
É triste, eu sei, mas é fato que as pessoas podem ser assim às vezes. Incapazes de assumir a responsabilidade sobre o que lhe fazem. Cruéis a ponto de se fazerem porta-vozes de filosofias cujos preceitos se recusam veementemente a aplicar quando você mais precisa. Totalmente dispostas a dedicar o seu tempo a rebaixá-lo, mas ocupadas demais para fazer qualquer coisa em prol do restabelecimento de sua saúde emocional. Incapazes até mesmo de apresentar um mero pedido de desculpas, o que, embora não resolva absolutamente nada, quando muito oferece à pessoa machucada o conforto de saber que o seu algoz ao menos reconhece o mal por ele causado.
As pessoas podem ser assim às vezes. E o que fazer a respeito? Certamente não é se chafurdar na mágoa e tampouco ficar à eterna espera de uma retratação que vai resolver o problema. Em lugar disso, eu prescreveria autorresponsabilidade, que, mais do que uma ação, é uma postura, uma maneira de se colocar diante da vida.
É fato que a autorresponsabilidade não impedirá que lhe lancem pedras e tampouco as desviará de você quando lançadas. Tal postura, porém, tornará menor o seu impacto, pois, antes de ser sugado pelas consequências das ações alheias, você fará dessa pedra parte da matéria-prima necessária à reconstrução do seu palácio. E aqui parece-me válido evocar a sabedoria de Sartre (1905-1980), com alguma adaptação ora necessária: “Não somos aquilo que fizeram de nós, mas o que fazemos com o que fizeram de nós”.
Você também pode gostar
Ademais, o conceito de autorresponsabilidade passa ainda pela nossa disposição em identificarmos de que forma nos fizemos vulneráveis, dando ao outro a permissão de nos ferir. Só assim, dedicando-nos a tal investigação, é que podemos escolher não mais nos colocarmos nesse lugar.
Enfim, autorresponsabilidade equivale a, antes de mais nada, trazermos conosco a ciência de que, se porventura depredarem o nosso palácio, caberá a nós reerguê-lo…
… sozinhos.