Minha tia Ruth – irmã mais velha de minha mãe – era mulher de causar impacto aonde chegasse.
E da mesma maneira que chegava causando boa impressão em algum lugar, se a conversa ficasse desinteressante, dava logo um tchauzinho geral e chamava ainda mais atenção por sua força, personalidade e beleza.
Beleza não padronizada e a força também não, no sentido literal.
Usou preto depois de ficar viúva antes dos 50, por muito tempo, até acinzentar, e do azul-marinho um dia alcançou o vermelho.
Mas se todos estivessem de vermelho, tia Ruth estava de preto, e se todas estavam de saia, tia Ruth estava de calça.
Fase que gravo bem da sua aparência física, lá pelos seus 50 e alguns anos, tinha o rosto fino ovalado com discretas rugas, linhas que imprimiam ainda mais personalidade à mulher original, com quem tanto aprendi sobre seres e saberes.
A cabeleira escura densa e curta – o suficiente para cobrir a nuca e orelhas – era mechada de branco, com fios lisos levemente ondulados que ela moldava naturalmente com uma escova grande e raramente com um tantinho de fixador, na franja longa.
Enquanto ela se arrumava, eu olhava e segurava o ar encantada. Mirava os seus olhos arredondados escuros penetrantes, o nariz fino mediano, lábios sempre pintados com batom, hoje, talvez, o discreto rosa retrô.
O corpo bem modelado, com cintura fina e quadril largo na medida, desenvolvia-se em um desfilar ondulante acompanhado por pernas com coxas grossas. E com a permissão dela e daquela época, causava galanteios que em nada se comparavam às atuais azarações e xavecadas do estilo desce mais um pouquinho.
E eu menina, ficava admirada com aquela mulher, minha tia. Com ela aprendi que a idade mental não está na certidão de nascimento.
Blusas soltas, saias e calças compunham o visual entre o casual e sofisticado, dependendo do humor e dia.
Usava sapatos, hoje, ao estilo vintage, com tira vertical no peito do pé, sempre com um saltinho 5, que conferia ainda mais elegância ao seu caminhar.
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Em dias frios, usava botinhas de cano baixo feitas por um sapateiro da Rua Augusta, em cores variadas, não usuais para a época.
Fui crescendo e a tia me ensinando que o legal era ser diferente, que o não convencional era o legal.
Quando entrou a moda do biquíni jeans, eu com 13 anos, tia Ruth foi comigo ao centro e lá compramos um modelo que era, digamos, maior do que eu esperava. Tanto enchi as orelhas dela com meus resmungos que ela sentou na máquina de costura e afinou as laterais da calcinha.
Ebaaa vou ao clube amanhã mesmo estrear! “ Vai nada” – disse ela – “ Antes, vamos bordar umas florezinhas com miçangas coloridas no top e na calcinha porque você não é igual a todo mundo”.
E lá fui em outro dia, a contragosto, toda cheia de florezinhas, e na piscina, causei “óóós” e entendi o tal poder do diferente.
Desde a morte do meu tio Vlad, marido de tia Ruth, contam os mais próximos, deu de pintar a óleo em telas, tecidos, placas, porcelanas e qualquer pedaço de base onde as tintas se fixassem. Tenho em casa, muitos quadros. E de tanto vê-la arteira, hoje arrisco em algumas artes.
Tia Ruth nunca teve uma profissão formal, mas ganhava dinheiro o quanto necessitasse: costurava, bordava, tecia, pintava, inventava qualquer tipo de artesanato que ninguém tinha feito e ainda sobrava tempo para jogar um carteado com os amigos.
E se a noite do carteado era de frio, no móvel baixo da sala, ela pegava um cálice e vagarosamente entornava a garrafa de conhaque. Bebida, dizia-se, para gostos masculinos. E saboreava aos pequenos goles para esquentar. Com ela aprendi sobre liberdade de escolhas e limites. E também sobre igualdade.
Cozinhava bem e moderadamente. Na mesa de tia Ruth tinha feijão, arroz, legumes, verduras, pouca carne e gelatina de abacaxi com maçã boiando na superfície, pra finalizar. Tudo em pequenas porções, e por respeito, porque afinal, desde aqueles tempos as pessoas morrem de fome.
Escrevia pensamentos e poemas, lia livros de filosofia e estudava tudo sobre a anatomia do corpo humano e as culturas de uma maneira geral. Com ela entendi que saber um pouco de tudo facilita o caminhar.
Na casa da tia Ruth eu podia tudo. Mas também tinha regras. Eu assistia novela e dormia depois das 24hs, coisa que minha mãe não deixava. Minha mãe também era moderna, mas em se tratando de filhos, nem tanto. A coisa ficava mais na teoria. Sobre novelas, aprendi que não me acrescentam nada. E que dormir tarde cansa o corpo no dia seguinte.
Tia Ruth morou por muito tempo no Centro, na Rua Amaral Gurgel, e eu me lembro da sua atitude cortês com os encarregados do prédio, pedintes, moradores em situação de rua, excluídos e discriminados. Naturalmente aprendi sobre gentileza e acolhimento.
Quando fiz 18 anos tia Ruth chorou. Eu morava em Santos, e na varanda do apartamento do 14 andar, eu, comendo um pedaço de bolo floresta negra, e ela, tragando um cigarro preso entre os seus dedos longos, olhou para mim com seus olhos grandes e soluçou: “ Ai que pena eu tenho de você, daqui em diante, tudo o que fizer de errado é por sua conta e risco, não tem mais essa de: socorro mamãe”. Nesse dia, achei que ela foi um pouco egoísta, me dizendo tudo aquilo no dia do meu aniversário, mas hoje, guardo o presente que ela me deu: o cigarro mata antes do tempo e cuidado…seus atos sempre tem um efeito.
Quando eu tive a primeira filha das três, tia Ruth, minha vizinha, veio visitar-nos logo que cheguei da maternidade.
Fez um “cutcut” na criança e disse: “ olha só, que bonitinha”, parabéns pela filhotinha. Analisou-me com seus olhos úmidos sinceros e ordenou: “ Chupa essa barriga, encolhe o umbigo, nada de cinta para prender o abdome, deixe o músculo trabalhar e voltar ao normal”. Nesse dia fiquei com raiva, mas hoje, olho para minha barriga bem decente e penso: como era sábia essa minha tia Ruth!
Por isso quando o povo começa a falar muito sobre moda e inovação, rejuvenescimento e regimes malucos com pegada fitness, diversidade e inclusão, consciência mundial e respeito, eu penso logo na querida tia Ruth. A coisa é bem mais simples gente. É questão de menos falar e mais aplicar!