Num tempo em que questões sobre abuso emocional imperam como se fossem vírus capazes de a cada dia contaminarem novas vítimas, a vacina e antídoto mais eficiente passa a ser o conhecimento sobre o tema, o autoconhecimento e quando necessário uma boa terapia.
Somos tão e há tanto tempo bombardeados por esse conceito inventado, que é quase impossível encontrar alguém descontaminando desse padrão. Por outro lado, hoje mais do que nunca, existem pessoas imunes, que despertaram dessa trama aprisionante em que invariavelmente um acaba se submetendo ao outro porque um fica sendo o amor ideal, e o outro não.
Na nossa era, em que o narcisismo impera, muitos ainda caem no conto desse amor ideal, na exuberante cilada da falta de discernimento em que acham que inclusive os relacionamentos afetivos podem fazer parte de cenários espetaculares a serem admirados. Nessa busca desenfreada pelo máximo do momento, o risco de se entrar em relacionamentos abusivos é enorme.
Embora a maioria insista em acreditar que sim, as evidências da vida nos mostram ininterruptamente que a nossa verdadeira felicidade não está e nunca poderá estar nas mãos de ninguém. O amor ideal, portanto, é uma invenção e uma convenção social que pode ser questionada e reinventada de acordo com a individualidade de cada um.
Numa pesquisa histórica podemos observar que a forma de amor que temos hoje é bastante distinta de tudo o que já existiu. Observando algumas tribos indígenas, por exemplo, claramente podemos notar que os laços afetivos que unem os indivíduos variam de modo estonteante, dependendo da tribo e da época em que se encontram.
Pode parecer impossível pensar no amor de modo diferente do usual romântico de se viver feliz para sempre porque vemos o nosso modelo afetivo como algo imutável e quase sagrado, mas ainda assim estamos mergulhados na construção de uma época. A boa notícia é que pouco a pouco pessoas e mais pessoas estão despertando e se libertando dessa ditadura sobre o amor ideal que faz parceiros aceitarem tudo em nome desse suposto romantismo. Estamos em pleno século 21 e muitos ao nosso redor dão indícios de tratar o amor de modo bastante diferente do que aprenderam.
Amar não é nem precisa ser igual para todos.
Na ideologia do amor, a lei é que é impossível ser feliz sozinho. Sem uma parceria afetiva, a vida estaria fadada ao fracasso. Em nossa atualidade, porém podemos ousar pensar de modo diferente, temos espaço e liberdade para nos experimentarmos muito além das referências aprendidas.
Vemos direto pelas mídias que ter um relacionamento afetivo não é exemplo de felicidade. Ninguém garante isso e o que mais recebo em meu consultório são pessoas vítimas de abusadores que apesar de todo o mal-estar sofrido ainda acreditam que relacionamentos terríveis dessa ordem podem magicamente se transformar em relacionamentos ideais.
Um grande engano que adoece quem antes não era adoecido. Estar com alguém definitivamente não é garantia de felicidade. Todos nós sabemos disso, mas insistimos em acreditar que namorando ou casando resolveremos a nossa vida, mas a vida insiste em nos mostrar que isso não é real.
Vemos pessoas e mais pessoas que aparentemente estão em namoros ou casamentos supostamente ideais e mesmo assim não se sentem plenas ou felizes, e não são poucos os que entram em crise e literalmente perdem o sentido da vida.
A lição mais contundente de todo este cenário é que as nossas questões emocionais e existenciais não se resolvem com o uso de “muletas” externas e que a viagem da transformação interior sempre começa dentro e não fora.
Na era do narcisismo toda sorte de dor e de desespero é lançada quando se tenta além do espetáculo tapar o vazio da falta de consistência e de amor-próprio com a promessa da felicidade no amor idealizado. A invenção de que o amor ideal as fará se sentirem inteiras pouco mais à frente trará toda sorte de infelicidade, porque na verdade ninguém tem o poder de preencher o outro em sua identidade e destino.
Caminhar junto, ora unindo interesses, ora exercendo a liberdade de ser de existir na própria individualidade revigora, faz crescer e traz autoconhecimento indispensável para a eterna construção de si mesmo.
Quanto mais desperto, melhor!
Silvia Malamud
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